terça-feira, 30 de dezembro de 2025

[Aparecido rasga o verbo] Sempre haverá, onde menos se espera, uma Fênix eterna ressuscitando das cinzas

Aparecido Raimundo de Souza

“Aprendi com as primaveras a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira”.
Cecília Meireles

O SOL BONITO que se avizinhava ainda não havia rompido de vez a madrugada quando Luana Cristina abriu os olhos. O quarto pequeno, de poucos móveis, cheirava a odores pútridos da invasão das águas do mar, lembrança de uma catástrofe que não molhava só paredes, mas inundava e afogava certezas. Tudo parecia reduzido a lixo: os planos, os afetos, os caminhos que antes pareciam tão claros.

Levantou, tomou seu café requentado, comeu um pão de dias passados, se vestiu e em seguida saiu à rua. Nisso percebeu que onde morava aos trancos e barrancos, também carregava as suas próprias cicatrizes. O banco da praça, gasto pelo tempo, guardava histórias de encontros que já não voltariam. O coreto, em frente ao santuário de Nossa Senhora da Penha, silencioso, parecia esperar por uma música que nunca mais seria tocada.

Porém, havia algo diferente naquela manhã. Solitária, num cantinho entre as rachaduras deixadas pelo invadir das águas, brotava uma rosa vermelha. Pequena, teimosa, quase insolente diante da dureza do chão esburacado e sem vida. Luana Cristina apesar disso, sorriu. Gracejou como se a vida lhe dissesse: “Ainda há espaço para o inesperado não vindo à baila. ”

O renascer não surge em explosões grandiosas, mas se faz em gestos miúdos: o café quente, logo adiante, ao se ver em frente ao antigo portão da metade da casa de dona Amanda, lhe foi oferecido pela boa vizinha. Antes, o abraço demorado da ilustre senhora, o vento ameno que trazia o cheiro gostoso do mar zangado. Cada detalhe desenhava um transtorno, e juntos formavam uma espécie de destruição anunciada. Não de destruição total, mas de uma esperança longínqua.

Naquele instante, Luana Cristina enquanto saboreava a xícara de café, entendeu que renascer das cinzas não se condensava em continuar respirando a cada novo dia, ou em apagar o passado, mas em aprender a caminhar sobre a terra encharcada. As molhaduras, afinal, provas robustas e cabais de que houve uma onda muito forte, e a sua presença funesta, ainda que desfalecida, deixava entrever uma prova insofismável e nítida de que em algum tempo, por ali, houve vida em abundância.

Assim, com passos firmes, depois de saboreado o café ela seguiu em frente pelas ruas vazias. Não mais a mesma pessoa, e talvez nunca voltasse a ser a menina que antes fora. Havia se tornado o seu quadro de solidão em esperança, oxalá em algo maior: ela descobriu ser um alguém capaz de florescer, mesmo se no passo seguinte enfrentasse a mais inconsequente das tempestades.

Os destroços sinistros que antes pareciam apenas imagens retorcidas, começaram a se revelar para pior, ou seja, como um solo infértil. Se fazia curioso: aquilo que simbolizava o fim, a destruição esmagadora, agora, de repente, se mostrava em um novo início. Como se cada fragmento levado pelo mar fosse ou representasse uma semente invisível, aguardando o momento propício para germinar.

Luana Cristina seguiu pela rua, e ao tempo em que entrava em outra, percebia que não se consubstanciava a sua vida num vazio voraz, todavia, se encadeava em algo grandioso e imutável em algo que renascia. Seu Gustavo, o padeiro, que perdera os fornos em uma retomada do mar enlouquecido, agora tentava vender pães, ainda mais saborosos, feitos com uma chama nova.

A professora dona Soraia, que se aposentara do grupo escolar voltava a ensinar crianças no prédio abandonado onde funcionava a agencia dos Correios, e a criatura fazia isso com livros gastos, a maioria molhados, mas os olhos sempre brilhantes. Até o cachorro que vivia na esquina da avenida principal, do terreno largo que um dia abrigara um enorme supermercado, esse cão triste e magro, corria agora com energia renovada. Voava o infeliz, às carreiras, como se tivesse descoberto que a vida se enunciava de recomeços, apesar da incerteza do mar raivoso e alucinado, logo em frente.

Luana Cristina aprendeu que o repulular não se condensava em um só ato, mas num processo renovador e aprimorado. Primeiro vinha o silêncio, depois a aceitação, e só então emanava do seu próprio ser, de dentro do seu “eu”, a coragem patente, bem ainda o afoito restaurador e aquilatado de dar o próximo passo sem medos ou receios.

Tudo, aos bocados poucos, se moldava em uma sequência lógica, tipo como aprender a respirar de novo, mas, desta feita, com pulmões mais fortes. Luana Cristina entendeu que o mar imenso não destrói tudo: ele purifica, abre espaço, revela o essencial. E o essencial, descobriu, não estava nos objetos perdidos, se engrandecia na capacidade de se fazer de novo.

Naquele instante, ao olhar para o horizonte distanciado e tingido de um azul brilhante, pelo nascer de um sol gostoso e acolhedor, ela sentiu dentro de si, do fundo da alma, que carregava uma fênix invisível. Não precisava de asas para voar, bastava simplesmente acreditar piamente que cada queda se aquilatava ao prelúdio de um voo maior.

E assim, entre bolsões de água salgada de destruição e incertezas, entre perdas e descobertas, ela seguiu. Não mais agora como quem tenta recuperar o que foi, o que já era, mas como quem se abre de corpo e alma para o que ainda poderia ser. Na mesma comunidade onde ela caminhava, em outros tempos atrás também residentes mais longevos carregaram as suas próprias ondas de um oceano adormecido.

Nicanor, o músico que tocava na esquina da entrada da cidade, ou do que um dia foi um terminal rodoviário, havia perdido o violão num assalto no centro de São João da Barra. Por semanas, seu medo ficou em silêncio, como se a vida tivesse lhe roubado a voz. Numa bela tarde, de volta à Duque de Caxias, encontrou um instrumento velho em um bazarzinho meio que esquecido. As cordas se faziam desafinadas e como num passe de mágica tornaram a enriquecer a sua nova melodia.

E, curiosamente, a sua música agora tocava mais fundo. Chegava aos ouvidos das pessoas que passavam, fossem indo ou vindo, como se cada nota se fizesse de um punhado de cicatrizes amoldadas a um inteiro indissolúvel.

Em senda igual, dona Betinha, a costureira. Trilhar igual ao de seus pares, viu, do nada, a sua pequena loja ser levada por uma onda inesperada. As máquinas que ousaram sobreviver, ficaram paradas, foram tomadas e cobertas de água salgada. Entretanto, invencível ela começou a costurar no que restou da sua casa, a desenhar roupas simples para vizinhos.

Logo, as suas peças ganharam fama: não apenas tecidos, as suas invenções viraram histórias bordadas. O que parecia fim virou satisfação. O que aos seus olhos tristes não ia além de quimeras, virou um enorme mercado de trabalho. Dona Betinha hoje está em Duque de Caxias e pela força do seu trabalho, venceu.

O jovem Bartolomeu, o atleta cheio de medalhas, sofreu uma lesão que o afastou das competições. No início, o rapaz se sentiu molhado por dentro, se viu destroçado, como se nunca mais pudesse correr. Mas do nada, um alento. Descobriu que podia treinar crianças. Ao ver esses rostinhos sorrindo, entendeu, de pronto, que a sua corrida, a maior delas, não havia terminado, apenas mudado de pista.

Nesse tom, cada um, à sua maneira, prognosticou que as ondas insanas não representavam somente restos, mas matéria-prima para novos começos. Como no acender de uma lâmpada, a pequena e pacata cidadezinha, antes marcada por perdas e máculas, começou a se transformar. A praça, ou o que sobrou dela, voltou a ter risos, o santuário de Nossa Senhora da Penha foi repintado, os muros da escola (ainda em pé) ganharam cores, e até o vento que vinha de bem longe parecia carregar consigo um perfume diferente.

No geral, tudo se amoldou a convicção imorredoura e pujante, como se todos, juntos, fossem parte única de uma nova fênix invisível, alçando voo ao mesmo tempo em direção ao novo porvir. No quadro geral, Luana Cristina entendeu e não só entendeu, aprendeu que renascer das cinzas não é só esquecer o que o mar arrastou para seu fundo insondável. É sobretudo aceitar que a água do mar logo ali, a poucos passos de seus medos bobos, faz parte da vida, e que deles, os receios e os percalços, emana faustosamente uma força inesperada.

Dessa força vem de roldão, à tona, uma virilidade indômita e altiva, soberba e empertigada, uma potência pundonorosa e garbosa que não pede licença, apenas insiste em brotar, em reflorescer e prosperar. E o faz de forma vitalícia. Cá entre nós, se fizermos como Luaninha Cristina que acreditou do fundo do seu coração que tudo o que havia virado mar dentro do próprio oceano, do nada se amoldou numa repaginação inigualável, teremos incondicionalmente em nossa estrada, ainda que vulnerável as ondas de um mar procelosamente espevitado, uma VIDA PLENA E EM TOTAL ABUNDÂNCIA.

Explicação necessária: as pessoas trazidas com o presente texto, foram substituídos os nomes originais, para preservar as suas individualidades. O texto traz um pouquinho de nossa passagem por Atafona, distrito de São João da Barra, no Rio de Janeiro.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 30-12-2025

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