Rafael Nogueira
Autoridades descobriram, assanhadas, o ofício de ensinar história oficial. A nova tendência tem personagens ilustres: ora o Presidente da República declara que a independência verdadeira foi em 2 de julho; ora perfis governamentais reapresentam o sentido das cores e dos símbolos da bandeira; e agora, um ministro do STF invoca a Constituinte de 1823 e a Revolução de 1930 para iluminar o presente.
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Arte: Paulo Márcio |
O problema é que, quando a história vira argumento de autoridade, conceitos de
hoje são projetados em épocas distintas e casos complexos viram parábolas
morais convenientes. Assim, o método — pesquisa, crítica de fontes e prudência
conceitual — cede lugar à narrativa legitimadora.
O primeiro tropeço é o
anacronismo. Aplicar “Estado de Direito” a 1823 significa transportar um
conceito amadurecido no Brasil ao longo do século XX para um país ainda em
consolidação. Naquele contexto, havia um arranjo em disputa: de um lado, uma
Assembleia nascente, de base social estreita, empenhada em limitar a Coroa; de
outro, um imperador que, apoiado em prerrogativas que culminariam no Poder
Moderador, buscava centralizar para estabilizar o Estado. Julgar aquele momento
por categorias atuais não esclarece: confunde.
Daí vêm os paralelos fáceis. Em 1823, D. Pedro I não era um outsider; era o próprio poder constituído, com comando sobre as Forças Armadas e a máquina administrativa. Projetar esse quadro sobre circunstâncias recentes — em que um líder derrotado e politicamente isolado apareceria como “novo Pedro I”, enquanto instituições hoje robustas posariam de “constituinte vulnerável” — inverte papéis sem apoio na evidência histórica.
Também 1930 pede calma. A
deposição de Júlio Prestes e a ascensão de Getúlio Vargas não se confundem com
“resistência democrática” exemplar; foram uma ruptura promovida por alianças
políticas e militares que falavam em nome da democracia contra alegados abusos.
A própria sequência cobrou coerência: em 1932, uma ampla mobilização em São
Paulo exigiu Constituição e império da lei — sinal de que o golpe em nome da
democracia desaguara em centralização autoritária.
O problema, portanto, não está
em citar a história, mas em reescrevê-la com anacronismos, falsos paralelos e
omissões convenientes. Nesse catecismo, a Constituinte de 1823 vira mártir
perfeita; Pedro I, vilão absoluto; e 1930 reaparece como redenção. A história
real, porém, resiste a moldes estreitos.
Há, por trás disso, algo de
psicologia política. O 7 de setembro de 2021, mencionado em juízo, reaparece
como trauma, e a rua, como ameaça permanente. Aos poucos, o foco se desloca:
golpes deixam de ser rupturas que descem do topo e passam a ser imputados à
base que discorda, à contestação, ao dissenso. Esse deslizamento semântico
facilita a criminalização da oposição em nome da democracia.
Não será um golpe narrativo?
Aquele que, sem tanques, reescreve o passado para blindar interpretações
oficiais no presente. É sutil — e, exatamente por isso, exige vigilância
intelectual. Não porque exista uma “verdade única” a impor; a história é debate
contínuo. Mas porque nenhum poder deve monopolizar o direito de narrar a
memória nacional.
O que se defende aqui não
implica indulgência com baderna ou condescendência com ilegalidades. Implica
reconhecer que história não é tribunal de emergência — e que tribunais e perfis
oficiais não devem funcionar como cátedras de história. Democracias maduras
convivem com controvérsia; regimes inseguros preferem catecismos.
No fim, a pergunta é simples:
queremos instituições fortes e debate livre, ou um simulacro em que a força das
instituições repousa na fraqueza do debate? Se a resposta é a primeira, convém
lembrar: a liberdade intelectual, inclusive a de discordar, é patrimônio sem o
qual não há democracia alguma, não um inconveniente a neutralizar com abusos
históricos a fim de legitimar a força e o arbítrio.
Título e Texto: Rafael Nogueira, O Dia, 10-9-2025
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