quinta-feira, 16 de outubro de 2025

O espelho cruel de Gaza: a esquerda europeia perante o islamismo

O antissionismo, envolto em linguagem progressista e apelos humanitários, surge como nova máscara de antigas formas de antissemitismo. Sob o pretexto da justiça social, ressurgem temas de perseguição e culpabilização do povo judeu, agora adaptados ao discurso político contemporâneo

João Maurício Brás

Num cartoon recente surge uma figura facilmente reconhecível como expressão do Hamas ou, em sentido mais amplo, do radicalismo islâmico. Segura um palestiniano num braço e um judeu no outro. Perante o anúncio de um cessar-fogo em Gaza, pergunta: «É para libertar os reféns judeus ou os reféns palestinianos?» 

Os reféns israelitas, os ainda vivos, porque muitos foram brutalmente assassinados pelo Hamas, especialmente mulheres, começam finalmente a ser libertados. E, no entanto, continua por resolver uma questão ainda mais trágica: quando será verdadeiramente liberto o povo palestiniano, refém do próprio Hamas, do Irão e do ódio antissemita que o instrumentaliza? Após a retirada do exército israelita de certas zonas de Gaza, o Hamas iniciou uma nova vaga de execuções contra palestinianos considerados desobedientes aos seus ditames. O cartoon acerta, assim, numa das verdades fundamentais e frequentemente esquecidas deste conflito: os principais reféns do terrorismo islâmico antissemita são, muitas vezes, os próprios palestinianos. 

Há, porém, uma segunda questão, igualmente inquietante: a coexistência cada vez mais visível entre a esquerda ocidental e este islamismo. 

O massacre de 7 de outubro e o subsequente recrudescimento do conflito israelo-palestiniano revelaram o verdadeiro rosto da esquerda europeia contemporânea. Incapaz de pensar a tragédia fora do seu velho esquema ideológico de opressor e oprimido, grande parte dessa esquerda projetou sobre o Médio Oriente a sua grelha moral maniqueísta, onde Israel encarna o papel de colonizador e os palestinianos o de vítima absoluta. Essa leitura simplificadora, que confunde moral com ressentimento, expôs a falência ética e intelectual de uma tradição política que outrora se afirmava racional e universalista. 

A defesa automática de qualquer causa antiocidental, mesmo quando animada por um fanatismo teocrático e homicida, tornou-se reflexo condicionado de uma esquerda que já não distingue a crítica legítima do ódio civilizacional. O conflito mostrou, assim, uma esquerda europeia sem bússola moral, disposta a relativizar o terror em nome da sua velha mitologia revolucionária e do seu instinto pavloviano de oposição ao Ocidente. Como lembra Nora Bussigny, o antissemitismo mudou de aparência, mas permanece o mesmo tanto na extrema-direita como na extrema-esquerda.  

Nos últimos meses surgiram dois livros notáveis sobre esta relação entre a esquerda radical e o islamismo político: Les Nouveaux Antisémites, de Nora Bussigny, e Les Complices du Mal, de Omar Youssef Souleimane. Ambos resultam de investigações diretas em ambientes de extrema-esquerda, em França, na Bélgica e até em universidades norte-americanas, procurando compreender como os acontecimentos de 7 de outubro desencadearam uma nova vaga de antissemitismo disfarçado de crítica à política de Israel. 

No livro de Bussigny, revela-se com clareza como discursos progressistas, fundados na pretensão de superioridade moral, degeneraram em retórica de ódio e desumanização. A autora mostra como uma certa esquerda, que se apresenta como vítima de perseguições, se tornou ela própria veículo de intolerância, impondo uma visão maniqueísta do mundo em que o “outro”, seja o fascista imaginário ou o judeu real é sistematicamente desumanizado. “O ódio ao judeu une os islamitas e os militantes LGBT nos meios da extrema-esquerda”, escreve Bussigny. A amplitude geográfica e social da sua investigação confere ao estudo um valor comparativo raro, revelando um mesmo fundo ideológico de hostilidade identitária. 

O antissionismo, envolto em linguagem progressista e apelos humanitários, surge como nova máscara de antigas formas de antissemitismo. Sob o pretexto da justiça social, ressurgem temas de perseguição e culpabilização do povo judeu, agora adaptados ao discurso político contemporâneo. Bussigny demonstra como certas narrativas de emancipação facilmente descambam em retóricas de ódio e alerta para a necessidade urgente de reafirmar a fronteira moral entre a crítica legítima e a desumanização do outro. O seu livro é essencial para compreender uma das tensões morais mais inquietantes da Europa atual: a transformação de parte da esquerda em portadora de um novo moralismo persecutório. 

Por sua vez, Les Complices du Mal, do poeta e jornalista sírio Omar Youssef Souleimane, aprofunda esta denúncia a partir de uma perspetiva pessoal e trágica. Tendo vivido sob um regime totalitário, o autor reconhece na França contemporânea os sinais de uma aliança perversa entre a extrema-esquerda, sobretudo a La France Insoumise (LFI), e os movimentos do islamismo político. Essa aliança, construída em nome do anticolonialismo, da causa palestiniana e da luta contra o racismo, degenerou, segundo Souleimane, em cumplicidade com discursos sectários, misóginos e abertamente antissemitas. 

A partir de observações diretas em manifestações e reuniões, Souleimane descreve um ambiente de confusão moral em que o combate ao imperialismo e à islamofobia serve de escudo para justificar a tolerância a formas explícitas de ódio e a rejeição da laicidade republicana. “A LFI e Rima Hassan encarnam o ódio à França, ao tolerarem formas explícitas de ódio e ao rejeitarem a laicidade republicana”, acusa o autor numa entrevista recente. A esquerda francesa, paradoxalmente, surge-lhe cada vez mais inimiga da liberdade e da razão crítica. As reações que o livro provocou, incluindo acusações de difamação vindas da própria esquerda, apenas confirmam o incómodo que causa ao questionar os limites da tolerância e os riscos do relativismo moral. 

Souleimane interroga-se até que ponto a solidariedade com os oprimidos pode justificar alianças com ideologias que reproduzem novas formas de opressão. A sua questão central é de ordem moral: podem a liberdade e a diversidade ser defendidas sem sacrificar a verdade e a coerência ética? Para o autor, a complacência de certos setores da esquerda constitui uma verdadeira cumplicidade com o mal, uma rendição da consciência racional à chantagem identitária. 

Lidos em conjunto, estes dois livros compõem um retrato perturbador da deriva moral da esquerda contemporânea. Ambos revelam que uma parte significativa da intelligentsia europeia começa, enfim, a enfrentar sem tabus o colapso ético de uma esquerda que, na ânsia de pureza moral, acaba por se aproximar daquilo mesmo que afirma combater. São obras essenciais para compreender o novo mapa moral e político do Ocidente, onde o bem e o mal se confundem sob bandeiras de justiça e liberdade. A sua leitura oferece um antídoto contra a cegueira moral e ajuda a distinguir a crítica justa da cumplicidade silenciosa com o fanatismo. 

A revista Spiked escreveu, a 13 de outubro, ao retratar a nova realidade de Gaza: “Agora que Israel se retirou, o Hamas voltou a virar a sua ira para os palestinianos. Está a lutar com clãs rivais e a executar os seus críticos. Não haverá paz em Gaza enquanto o Hamas sobreviver.” A metáfora clínica é perfeita: um mal que, se não for totalmente extirpado, regressa sempre mais violento. Gaza e o mundo precisam, antes de tudo, de libertar-se dessa doença moral que confunde o ódio com a justiça e o fanatismo com a compaixão.

Título e Texto: João Maurício Brás, SOL, 15-10-2025, 14h37

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