Carina Bratt
HOJE, DONA NENÊ aos 78 anos, sentada nos pés da cama meio capenga, o colchão sujo, coberto por um lençol enegrecido pela falta de limpeza, olha longamente para o teto da sua casa como quem procura respostas em algumas das muitas rachaduras. Não há filhos correndo pelos corredores, nem os gritos dos netos lhe pedindo atenção, ou os mais traquinas desenhando figuras no chão e nas paredes com pedaços de giz do tempo em que era professora. Não há casa própria. Apenas um barraco entre tantos outros numa favela sem nome de rua e sem um número no portão de entrada que possa indicar aos passantes, que ali é o seu lar.
Em contrapartida, há exames pendentes jogados
numa cestinha de vime ao lado de um criado mudo próximo à janela. Persistem
dores estranhas que não se explicam, e talvez, ‘para ontem’, uma internação à
vista, sem acompanhante, sem alguém para segurar a sua mão, se por qualquer
motivo precisar deixar o mundo dos vivos. Ela pensa nas escolhas. Pensa muito.
Sempre pensa nas malditas escolhas. Ou melhor, rumina lentamente nas
‘não-escolhas’. Nos ‘depois eu vejo’, nos ‘não agora’, nos ‘não sei o que
fazer’. Foram tantas vezes em que a vida pediu uma decisão e ela respondeu com
silêncio.
E o silêncio, a mudez desses instantes, ela
descobriu tarde, também, obviamente por algum motivo que não lembra, mas na
verdade, foi uma porcaria de uma escolha. Dona Nenê se quedou em permanecer em
relações que não a viam. Empregos os
mais diversificados que pagavam pouco e exigiam muito. Escolheu não pedir ajuda
aos vizinhos mais próximos, e o fez por orgulho ou por vergonha e medo. Vai se
saber, nessa altura do campeonato! Decidiu não cuidar da saúde, porque sempre
havia algo mais urgente. E por ser urgente, achou melhor deixar para outro dia.
‘Talvez amanhã eu acorde mais disposta’. Mas hoje, aos 78 anos, com o corpo
pedindo socorro e o coração com um punhado de pontos de interrogações, ela
entende que ainda há tempo.
Que mesmo sem o carinho necessário dos filhos, sem a ternura contagiante dos netos, sem a paz acolhedora de uma casa para chamar de sua, e sem companhia para bater papo, há algo que ninguém pode tirar dela: e o que é? A chance de escolher diferente. Dona Nenê, num dado momento, respira fundo. Talvez amanhã (Oxeeeeee!) marque os exames. Talvez depois procure um abrigo, uma conversa, um gesto de cuidado. Talvez, no sábado, ligue para seus filhos e peça que tragam os netos, ou talvez, no pior dos mundos, escreva uma carta para si mesma, dizendo: ‘Nenê, sua abestalhada, você merece mais do que o que aceitou até aqui.’
Aos 78, anos, dona Nenê descobriu que a vida
não tem roteiro. Percebeu também que a vida é feita só de grandes decisões. Às
vezes, de pequenos gestos de pura coragem. E escolher cuidar de si pode ser o
primeiro deles. Não quer pensar mais nas escolhas que não fez quando jovem. Já
foram para o espaço. Já doeram o bastante e agora somente as cicatrizes
permaneceram num emaranhado de marcas. Quer falar do agora. Quer falar para si
mesma do peso de acordar e sentir que o mundo continua girando, mesmo quando
tudo dentro dele se tumultua completamente estancado.
É estranho perceber que a vida não tem
roteiro. Sim, é um fato concreto que não se pode negar. A vida não tem roteiro.
Nem direção. Mesmo modo, que não há garantias. Que mesmo fazendo tudo ‘certo’,
pode se acabar sem chão, sem teto, sem uma porta de emergência para escape
imediato. E que mesmo fazendo tudo ‘errado’, dona Nenê sabe que ainda (apesar
das escolhas não feitas), há tempo de construir algo novo. Mas que merda!
Construir o quê?! Hoje, dona Nenê não tem muito. Mas sobra consciência. E isso,
por mais doloroso que seja, não deixa de ser um ‘começo’. Meio capenga, mas um
‘começo’.
Talvez ela não disponha de companhia para o
hospital, mas tem a voz para pedir ajuda. Talvez não tenha casa, mas ‘ainda’
não lhe falta a coragem para procurar abrigo. Talvez, sem o carinho dos filhos,
se recorde que pode cuidar de si mesma como nunca se cuidou antes. Não é fácil.
Não é bonito. Mas é um fato real. Um fato concreto e palpável. Às vezes, a
verdade é o único lugar onde cada um de nós, de alguma forma, um dia ainda
distanciado, poderemos, quem sabe, ainda que a toque de caixas, ou a trancos e
barrancos, lutando com as intempéries, pelejando com as adversidades, R E C O M E Ç A R.
Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha no Espírito Santo, 19-10-2025
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