Carina Bratt
NA ESQUINA da Avenida Pintassilgo, entre um portão enferrujado e um coqueiro teimoso, vivia Tel, um vira-lata de pelagem caramelo e olhos sonhadores que pareciam ter lido todos os poemas de Cora Coralina. Tel não era um cão qualquer. Tinha um faro apurado para biscoitos de chocolate, um latido que lembrava o Agnaldo Timóteo, o (seu cantor preferido), e um coração que batia mais forte toda vez que a cadela da vizinha, da casa contígua, a encantadora Lisa Mel, saia com dona Francisca, a sua dona para ir na padaria, ou no supermercado e impreterivelmente precisava passar com seu andar cadenciado em frente ao portão de onde ele, o Tel, vivia a sua vidinha triste e melancólica.
Lisa Mel era um poodle com pedigree e pompons das mais variadas cores usadas no dia a dia. Nunca repetia uma cor. Apesar desses adereços, de ser bem tratada e coisa e tal, não deixava que as cores subissem ou fizessem à sua personalidade. Elegante, sim. Esnobe, jamais. Tel, que nunca teve pedigree nem pompons, decidiu que se fizera chegada a hora de conquistar o coração da dama do portão da casa ao lado. Naquela manhã ensolarada, Tel se perfumou com o que tinha: rolou de corpo inteiro no manjericão da horta de dona Cida, a sua dona. Depois, ensaiou seu melhor uivo, uma mistura de música pra fazer coração se apaixonar com latidos roucos e se posicionou estrategicamente ao lado da lixeira, onde sabia que a Lisa Mel passaria em sua caminhada matinal indo com a sua dona às compras.
E quando ela passou, ele se fez presente.
— Bom dia, flor da minha esperança — latiu Tel com um charme que só os cães de rua sabem ter.
Lisa Mel parou, olhou de soslaio para ele e respondeu com um abanar de rabo que poderia ser tanto um ‘sim’ quanto um ‘você é um gatinho, apesar de ser um cachorrinho muito engraçadinho’.
— Sabia que seu nome combina com o meu? Tel e Lisa Mel... parece nome de dupla sertaneja, arriscou ele, tentando parecer casual.
Lisa Mel deu uma risadinha sincera, tipo aquele som envolvente que só os poodles sabem fazer, e seguiu seu caminho com a sua dona. Tel ficou ali, estático, olhando e absorvendo a nuvem de perfume e dignidade que ela deixava para trás. No dia seguinte, ele apareceu com uma flor roubada do jardim da dona Lurdes, a vizinha moradora duas casas abaixo da residência de Lisa Mel. Era uma margarida meio torta, mas cheia de segundas e terceiras intenções. Deixou-a na calçada, como quem não quer nada, e se escondeu atrás do poste de luz que ficava em frente para ver a reação que causaria.
Lisa Mel viu, cheirou, e dessa vez abanou o rabo com mais entusiasmo. Tel quase desmaiou de emoção. E assim, dia após dia, o cão sem pedigree foi conquistando a jovem cadela de pompons coloridos e olhos que lembravam o infinito. Ora com cantadas improvisadas, ora com flores tortas e latidos afinados, Tel provou por ‘a’ mais ‘b’, que o amor não precisava de pedigree — carecia apenas de coragem, de criatividade e um bom lugar para esperar a hora certa de latir. Sabia também que no fim das contas, o coração não entende de raças. Ele só confisca mimos recheados de encontros e de cães que sabem que o amor é eterno e o melhor de tudo, mora literalmente ao lado.
Domingo, quase final de tarde, portão da casa de sua amada, Tel se aproximou a passos curtos com uma flor na boca. Lisa Mel igualmente se achegou, elegante como sempre. Ao vê-la, Tel correu, foi à luta. Falou:
— Se beleza fosse crime, você estaria presa há tempos, minha doce e suave Lisa Mel.
Lisa Mel, se abriu igual mala velha e pareceu doida para se atirar nos braços daquele cachorrinho com cara de menininho triste. Fez uma pose e respondeu:
— E você seria o advogado de defesa mais enrolado da cidade. O que é isso na sua boca?
Tel, todo derretido, não deixou por menos:
— Uma flor. Uma Margarida. Roubei do jardim da dona Lurdes. Mas creia, foi por uma boa causa: você.
— Roubar por amor? Que tipo de cachorro é você?
— Um cachorro que não tem pedigree, mas tem poesia. Um cão vadio que não tem pompons, mas respira e exala paixão.
Lisa Mel sorrindo, meio sem jeito, completou:
— Você é atrevido, Tel.
— Atrevido e Apaixonado. Desde o dia em que você latiu para o carteiro com aquele sotaque francês... eu cai de quatro... os cinco pneus furados...
— Alto lá! Cinco? Todos nós só temos quatro patas, ou pernas...
— Fazia referência ao estepe, minha deusa. Esqueceu do estepe?
— Ah, entendi. Voltando ao latido em francês para o carteiro, aquilo foi um espirro, Tel.
— Espirro ou encantamento, não importa. Foi a partir daquele dia que o meu coração aprendeu a roubar a chave do portão da bolsa da minha dona e vir parar na sua cola...
Lisa Mel, riu alto:
— Você é um cãozinho impossível.
Tel, se sentindo o rei da cocada preta, argumentou:
— Só se fosse possível te esquecer, Lisa Mel, minha rainha, minha eterna princesa. Vamos, com espirro em francês ou em português, me dá uma chance. Fuja pro quintal aqui onde moro. Tenho minha casinha com janelinhas, sombra, boa comida, água fresca, caminha quente, e o melhor de tudo, sem ninguém pra julgar um amor sem pedigree.
Lisa Mel olhou para os lados. Suspirou:
— Tá bom, Tel. Você venceu. Vamos viver esse nosso amor canino.
Tel deu pulos e saltos de alegria, rodou em círculos, latiu uma canção improvisada.
— Pode parecer promessa, mas eu sinto que você é a pessoa... mas parecida comigo que eu conheço, só que do lado do avesso...*
Lisa Mel se aproximou, tocou o focinho de Tel com o dela.
— Eu vou meu lindo. Mas antes... tem uma coisa que você precisa saber...
— Pode dizer, meu coração é seu. Fala, não me deixa em desespero...
— Euzinha... tô indo embora. Minha dona vai se mudar pra outro bairro. E vai ser justo amanhã...
Tel por momentos congelou. A flor que trazia entre as patas, caiu no chão da calçada. O mundo pareceu parar de se fazer presente por um segundo.
— Amanhã?
— Amanhã. E eu só descobri ontem. Achei que não ia doer, mas agora... agora dói. E muito... acredite...
Tel se sentou, cabisbaixo. Mel se aproximou e encostou seu corpo ao dele, apesar da grade fria do portão que os separava.
— Mas hoje... hoje eu serei sua. Todinha. Vamos viver essa noite como se fosse única...
Tel não respondeu. Apenas fechou os olhos e apertou as suas patas às dela. O sol se foi. E o amor, mesmo breve, latiu forte.
— Dá um jeito de deixar o portão aberto...
Tel deixou o portão aberto, obviamente. Lisa Mel, tardão da noite, deu uma escapada e fez um amor lindo com o amor de sua vida. Manhã seguinte, realmente a beldade se mudou. Tel ficou no portão, se posicionou olhando o caminhão partir, se prostrou chorando com a mesma margarida torta entre os dentes. Foi um adeus breve e silencioso, mas cheio de promessas. Os primeiros dias vieram, em seguida os meses, esses uau!, esses foram difíceis. Tel não comia, não latia para o carteiro, não enxotava os passarinhos nem os pombos.
Tampouco roubava o manjericão da horta da sua dona. Mas o tempo, esse velho veterinário da alma, foi curando aos poucos. Até que, numa tarde de sexta-feira, o sol já se havia ido embora, chegou uma carta. Sim, uma carta trazida pelo carteiro e foi a partir dela, que Tel finalmente voltou a latir. Era de Lisa Mel. Com uma foto dela no novo quintal, pompons ao vento, e uma mensagem:
— Meu amor, ainda penso em você. Penso demais. Minha dona disse que poderemos ir visitar a casa de sua dona dentro de alguns dias. Elas são amigas, lembra? Prepare o manjericão. Me presenteie com uma margarida...
Nos dias seguintes, Tel latiu tão alto, mas tão alto que assustava os passarinhos e também aquela enorme quantidade de pombos que não arredava os pés do pedaço. Naquele momento, ao receber a carta, ele soube: Lisa Mel e ele não estavam separados. Somente passavam por uma pequena pausa. E assim, mesmo com a distância, Tel e Lisa Mel se tornaram um casal lendário para todo o bairro. O amor deles resistiu ao portão, ao tempo, e até a mudança repentina de localidade, porque quando o coração late forte, nem o CEP consegue ficar calado.
* Canção citada no texto‘ Avesso’ cantora Ceumar.
Título e Texto: Carina Bratt, de Sooretama, em Linhares, no Espírito Santo, 5-10-2025
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