sexta-feira, 24 de outubro de 2025

[Aparecido rasga o verbo] Meros operários da construção civil

Aparecido Raimundo de Souza

NA ENORME caixa de ferramentas, entre o alicate e o prumo, o esquadro e nível de mão, vivia um simples Martelo. Todavia, um sujeito de compleição forte, viril, pesado, de cabo firme e cabeça de aço. Se orgulhava, sobremaneira, de sua utilidade; de sua força e precisão. Porém, havia algo que o inquietava de forma contundente: um pequeno Prego de gestos adamados e efeminadamente tímido. Apesar disso, um ser educado e brilhante. Mesmo sendo um prego, encarava sem pestanejar qualquer trabalho, tipo um desses apelidados de “pau pra toda obra”. Final do dia, o delicado se recolhia em seu canto ladeado pela Talhadeira, a Segueta, a Brocha, a Colher de pedreiro e a Turquesa e ali repousava sem que ninguém o perturbasse.

O Martelo, forte e espadaúdo, opulento e alentado, o observava em silêncio. Havia algo naquele Prego mirrado e franzino que o fascinava. Talvez a sua simplicidade carente, o seu corpo precisado de afeto, ou ainda, quem sabe, a sua vocação nata para suportar impactos traumáticos e ainda assim permanecer firme e porfioso. O Martelo, acostumado a bater forte e pesado, preciso e sem rodeios, pela primeira vez em sua vida passou a nutrir uma vontade de tocar com delicadeza bucólica aquela criaturinha que sem saber por qual motivo, lembrava uma mocinha intocável em sua vidinha desprotegida de um amor, ainda que fosse um querer selvagem e avassalador.
— Fomos feitos um para o outro — pensava o Martelo em suas espiadelas. Mas será que ele me vê apenas como uma ferramenta descomedida que só sabe bater duro, embora a minha força seja de impactos controlados?

O Prego, em seu íntimo, albergava com a mesma intensidade, uma admiração secreta. Sabia que só o Martelo poderia lhe dar propósito, cravá-lo num mundo desconhecido e torná-lo útil. Temia, a bem da verdade, os golpes da sua marreta avolumada e o impacto da sua virilidade, bem ainda a dor que viria junto, de roldão, com o amor, caso algum dia, por acaso, ele resolvesse se abrir e se declarar majestoso e brejeiramente amante. Até que naquele final de semana, o carpinteiro os escolheu. O Martelo foi então erguido e levantado e o Prego posicionado para o aconchegante e tão sonhado açoite. No instante do encontro — no primeiro golpe —, houve um silêncio terrificante. Não o silêncio da dor em si arrebatada em toda a sua potencialidade, mas o encontro tanto tempo aguardado da inocência e da revelação.

O Martelo cumpriu seu dever. Caiu matando de forma insofismável, não o machucando. Guiou as suas batidas com furor coerente e infalível, ao mesmo tempo em que se fazia imbuído num “afervoramento de amante”, tocado num entusiasmo tépido e quase tímido. O Prego não deu um pio. Não resistiu, não gritou. No fundo, se deixou ser penetrado, alargado, revirado posto ao avesso, aceitando a sua condição de escravo de um amor que para ele parecia impossível. E ali, na madeira, ambos selaram seus destinos. Unidos não por palavras, mas pelos atropelos da função. Um amor tresloucado meio que ilógico e irreal, que só fazia sentido no gesto. Um romance tipo um gostar platônico nascido em meio de uma oficina, onde até o impacto do açoite podia ser entendido como um gesto profundo do mais saboroso carinho.

Esse primeiro encontro foi breve, sutil, mas para eles, definitivo. O Martelo desceu ensandecido, com garra, com firmeza, e o Prego, em vez de se quebrar, se deixou abrir igual mala velha. Se engrandeceu de alma pura, e por essa razão, encontrou o seu lugar. A madeira os acolheu como testemunha silenciosa e sorriu faceira, em vista de um amor infinito que não precisava de palavras. Mas e depois? Pois bem! Depois vieram, na sequência os dias pesados e tenebrosos das quietudes, das serenidades e pasmaceiras, das bocas-fechadas e da mudez taciturna. O Martelo voltou à caixa, entre ferramentas que não sabiam de sua transformação. Já não se fazia o mesmo. Sentia, em seu âmago, uma falta danada, quase doente do Prego — não da função dele, mas da conexão em um grau indescritível.

O Prego, por seu turno, estava lá, ficara preso à madeira. Se fizera imóvel, mas realizado e pleno. Pela primeira vez, o danado se sentia parte de algo maior. O Martelo, desde então, começou a mudar. Já não batia com a mesma pressa. Escolhia seus golpes. Aprendeu a ser gentil, mesmo sendo feito para a brutalidade da força. E o Prego, igualmente imóvel, passou a irradiar presença. Era pequeno, frágil, mas sustentava quadros, prateleiras, lembranças. Se tornou um ser essencial. De tempos em tempos, o Martelo passava por ali. Tocava a madeira ao redor, como quem acaricia sem ser visto. E o Prego, mesmo sem se mover, do mais profundo de suas inquietações, sentia essa emoção. Na verdade, uma fervura a lhe queimar o mais colossal e insano existente em suas entranhas.

Era, tipo assim, um amor quieto, mas duradouro, meigo, mas incandescentemente pertinaz. Não precisavam estar juntos para se coadunarem ligados. Nesse chove não molha, outros pregos vieram. Outros martelos também pintaram na área. Mas aquele par — uau!, aquele primeiro encontro — aquele agarro, aquelas estocadas, tudo ficou para sempre marcado. Não pela utilidade, sobretudo pela descoberta de que até as ferramentas por mais inanimadas que possam ser, da mesma forma podem sentir. Por conta disso, o impacto empregado na força esmagante do amor, pode ser afeto, complemento, benquerença, idolatria, rabicho e adoração. Até o que parece duro e forte, pode num instante ser delicado. Nesse harmonioso, entre tábuas e memórias, o Martelo e o Prego seguiram. Um jogado na caixa, outro na parede. Unidos por algo que nem o tempo, nem o uso, nem a ferrugem poderia apagar.

Os meses se passaram. O Prego, orgulhoso, sustentava um quadro de um cágado com cara de capeta vestido de presidente da república com a faixa presidencial no meio do peito. O Martelo, cada vez mais viril e amoroso vivia pendurado num gancho, observando tudo com pesada ansiedade nos olhos. Até que um dia, sempre há um dia, de repente, do nada, inesperadamente, o quadro caiu.
— O quê?! — gritou o Martelo, assustado, boquiaberto, entrementes, quase se soltando do gancho. — Jesus, Maria, Jose, meu Preguinho, meu Preguinho!

O Prego, por seu turno, meio torto, apesar do baque, ao ouvir essas palavras, respondeu com a dignidade que sempre lhe fora peculiar:
— Foi a umidade, meu príncipe querido. Não é culpa minha. Estou bem...

O carpinteiro, um traste rude e alheio a tudo, sem cerimônia, arrancou o Prego com um alicate e o jogou numa lata repletada de sucatas as mais diversificadas. O Martelo, desesperado, tentou ir no embalo e se jogar do gancho para salvá-lo, mas caiu direto sobre o pé do carpinteiro. Se tivesse planejado... mas não. Foi uma coisa assim de ímpeto.
— AAAAAIIIII! — filho de uma... gritou o ser humano endiabrado, lançando o Martelo longe, que coincidentemente ou não, nunca vai se saber, foi se estabacar parando... coisa do destino e do amor, dentro da mesma lata.

Nesse contexto surreal, inesperadamente entre parafusos e porcas, porcas e parafusos, os dois, Prego e Martelo finalmente se reencontraram.
— Você caiu por mim? — Perguntou o Prego, emocionado, quase chorando...
E o Martelo, sem caber em si de tanta satisfação, gritou a alta voz:
— Literalmente — respondeu mostrando um olho roxo e uma rachadura quase imperceptível no cabo.

Uma semana depois, os dois foram reciclados e o melhor de tudo, juntos. Derretidos, fundidos, e transformados... num vistoso e bem-apessoado e pujante abridor de garrafas.

Hoje, vivem numa cozinha de um restaurante luxuoso frequentado por artistas e famosos. A função de ambos: abrindo garrafas de cervejas e refrigerantes, brindando à vida, sobretudo o amor imorredouro que começou com golpes e terminou com sonoras e inesquecíveis gargalhadas. Essas risadas fortes e prolongadas —, não outra coisa senão as vozes de um par de corações em festa. Duas criaturas que apesar da diferença de idade, se completaram em nome do mais sublime e infindável bem querer incomensuravelmente angelical.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 24-10-2025

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