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| Arte: Kiko |
Em aula recente, falando sobre
memória coletiva e credibilidade institucional, defendi que patrimônio cultural
é, ao mesmo tempo, necessidade, conforto e riqueza, como estrada, hospital,
porto e mercado. Sem ele, a sociedade cai em amnésia, e nada melhor do que um
povo sem memória para ser conduzido por maus caminhos. A diferença é que, em
vez de transportar corpos ou mercadorias, o patrimônio transporta sentido, que
é o que nos impede de acordar, a cada geração, num país sem lembrança de si
mesmo.
Quando falo em patrimônio, no
âmbito da cultura, da história e da arte, não me refiro só à igreja antiga, ao
castelo imponente ou ao azulejo exótico. O conjunto é bem mais amplo: arquivos,
bibliotecas, museus, saberes, festas, sotaques, receitas. Parte disso é
material, palpável, e parte é imaterial, encarnada em práticas e gestos.
Hoje, o desafio mais grave
talvez seja o da memória digital. A tragédia dos antigos era queimar
pergaminhos; nós somamos a isso o apagão de servidores. Uma parcela imensa da
vida pública brasileira está presa em plataformas privadas, sujeita a caprichos
comerciais ou à simples obsolescência técnica. Um clique errado, uma mudança de
política de uso, e some um pedaço decisivo do enredo nacional.
Pense em 2013. Quem quiser
estudar seriamente aquele ciclo de protestos dependerá, em boa parte, do que
não foi apagado da internet. Perderam-se perfis banidos, vídeos derrubados,
páginas de movimentos que fecharam, blogs descontinuados. É como queimar um
arquivo público, e depois exigir que o historiador reconstrua o quebra-cabeça
com peças faltando.
É nesse ponto que a discussão sobre a fragilidade da memória se encontra com a discussão sobre a credibilidade dos procedimentos. Arquivos íntegros, regras claras, instituições sólidas existem para que a vida coletiva não dependa apenas da memória fraca e arbitrária dos indivíduos. A ausência de um arquivo estável e verificável espelha a ausência de procedimentos políticos estáveis e críveis. Quando esses mecanismos perdem crédito, é o passado que obscurece e, com ele, o futuro, que também fica sem rumo.
Pensando nisso, lembrei de
José Ortega y Gasset, em A Rebelião das Massas, que chama à cena Júlio César, o
homem que aparece quando um sistema insiste em repetir seus rituais depois de
ter perdido a alma.
A República romana ainda
realizava eleições, ainda reunia o Senado, mas, na prática, o mecanismo
eleitoral já não correspondia à realidade de um centro com seus braços
espalhados pelo mundo. A maioria, distante de Roma, não votava; a minoria,
perto do foro, decidia por todos. O procedimento, descolado da realidade, não
parava em pé: parecia ficção, e a ficção política costuma atrair a violência.
Antes de César, Mário e Sila
haviam ensaiado ditaduras vazias: força sem forma nova, poder sem solução.
César faz o oposto. A conquista da Gália dá substância ao seu mando e o põe à
frente de um mundo que já não cabia nas velhas molduras. Ele intui uma espécie
de Estado sustentado pelas províncias, pelos “de fora”, e não mais pela
oligarquia senatorial. Por chegar cedo demais, é esfaqueado, não só pelos
punhais físicos, mas por uma elite que custa a admitir que a realidade já
mudou.
César cai, mas o sistema não
volta ao que era. A velha República, reduzida a palavra, já não tinha como
renascer.
Eis o nó: sem memória
preservada e sem regras críveis, a política não consegue se manter como campo
de disputa regulada. A falta de confiança em arquivos íntegros, procedimentos
claros, fiscalização simétrica e liberdade de crítica atrai punhais, reais e
simbólicos. A luta pela memória e pela credibilidade é, em última análise, a
luta para que o procedimento não se torne uma ficção vazia, e para que não
sejamos empurrados, de novo, ao improviso e à violência.
Título e Texto: Rafael Nogueira, O Dia, 11-12-2025

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