domingo, 14 de dezembro de 2025

[As danações de Carina] Pequenas lembranças que não envelhecem...

Carina Bratt

Para meu Pai Francisco, o velho militar seu ‘Chico’ que descia da sua patente e me abraçava com a ternura de um Pai de verdade e pouco se importava com a autoridade que seu cargo exigia.

SEMPRE LEMBRO DO MEU PAI. Sempre! Às vezes, do nada, a imagem dele me aparece num repente, se firma num instante inesperado que chega vindo de uma ternura imorredoura e persiste e perdura, tipo um ‘assim do nada’, e que permanece e resiste ao passar do tempo. Nessas horas, fica em mim guardada, ou melhor, resplandece em mim, um tempo saudoso, um ontem que aflora de um lugarzinho especial dentro da minha alma. Um tempo distanciado que colado na minha pele, me traz uma saudade sem pressa de ir embora.

Nessas horas, é bom que se diga, as suas lembranças, os seus feitos de pai me tiram do sério. A sua saudade ‘por um sempre’ me deixa vazia, oca por dentro, mas ao mesmo tempo — como num passe de mágica — me transporta e ainda agora, me faz viajar saudosa para um mundo incomensurável de recordações imorredouras. Noutras vezes, a minha saudade se torna uma angústia de rosto comprido, noutras, de olhos cheios de lágrimas, onde uma dor sem tamanho se achega sorrateira e me destrói os pilares da menina mulher.

Nesses instantes, uma aflição tresloucada me tira do prumo e não só isso, persiste em me fazer voltar aos tempos em que esse general linha dura (naquele tempo nem general ele era), aquele jovem militar de cara feia, de rosto fechado, comandava um monte de soldados em formação, ainda na saudosa Curitiba, ou mais precisamente nas dependências do ‘Forte do Pinheirinho’. Curitiba é a cidade onde vim ao mundo exatos trinta e seis anos atrás. Lembro que a mãe me levava no quartel e quando chegávamos, por lá, me recordo que papai muitas vezes diante de um batalhão formado para instruções, eu fazia a gentileza de me desvencilhar das mãos da mamãe e sair em correria desembestada. Nossa!

Sapeca, ziguezagueava em meio as fileiras deixando todo mundo em polvorosa. E meu pai, nessas horas, sorria mavioso. Não brigava, e sem deixar a pose da autoridade da farda que usava, saia correndo atrás de mim, gritando para os recrutas, ‘peguem essa mocinha’ e diante dessa ordem, aquela garotada nova ficava sem saber se saia da fila, se largava as armas ou um mais afoito tinha a coragem suficiente de me pegar no colo e me entregar ao meu ‘papito’. O fato é que ele sorria de um canto a outro, sem brigar com ninguém, sem chamar a atenção e sem descer da alta pose do seu cargo.

Bons tempos que não voltam, a não ser em pequenas tiras de lembranças que ao aflorarem, me transportam para um tempo de felicidade plena. Tantos depois, quando ‘assinou um documento’ para que eu viajasse com o Aparecido e as recomendações. ‘Meu bebê está indo em uma. Se voltar em duas, vou buscar o senhor debaixo da cama da sua mãe’.  Anos depois, no leito de morte, papai no hospital, dizendo para o Apa: ’Que pena que o senhor levou a sério as minhas palavras. Minha filha vai continuar viajando com o senhor e a minha esposa ficará sozinha, sem uma criança peralta como era a nossa princesinha correndo por toda a casa...’.

São lembranças perpétuas, que não envelhecem, que não morrem, que ficam no ‘para sempre’ das nossas recordações. A minha mãe, senhora dona Marcela, ainda está inteira, sacudida, um pouco magoada e triste pela ausência de papai. Sempre a pego chorando, no quarto, e nessas horas, o que a faz sorrir de modo tímido, é uma caixinha que papai deu a ela, no aniversário de casamento. Uma caixinha onde estão guardadas fotos de antigos janeiros, como eu no colo dos dois, outras tantas com euzinha correndo pelo quintal imenso da casa do bairro da Cachoeira, em Curitiba. Outras tantas eu de uniforme nas dependências da escola Romário Martins...   

Papai não está mais aqui, ou melhor, está sim. Claro que está. Se faz presente no meu coração. A farda de general ainda está no quarto da mãe, as insígnias, entrelaçadas a um bocado de fotos por todos os campos e quarteis por onde passou. Não sei se um dia voltarei a estar com ele.  Às vezes, me pergunto se depois que morremos, em algum lugar especial a gente — melhor dito, os entes queridos voltam a se encontrar.

Guimarães Rosa dizia que ‘as pessoas não morrem, ficam encantadas’. Acreditando nessa verdade, fico me questionando se um dia verei papai de novo, se poderei me aconchegar em seus braços e dizer, ‘papito, eu te amo’. Em resumo, ‘a gente morre não é para provar que viveu, ou que passou por aqui, mas para deixar nos olhos e no coração do Pai Maior, a esperança viva de que um dia — um dia, não sei quando, todos nós voltaremos a ser aquela grande família unida que um dia tivemos o prazer de ser quando estivemos de passagem por estas Terras’.

Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo, 14-12-2025 

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