Kim D. Paim
Para que o Brasil dê certo, é
necessário mais do que reformas pontuais ou alternância de partidos no poder. É
imprescindível uma ruptura com o sistema que, há décadas — ou mesmo séculos —,
comanda e molda os rumos do país. Essa ruptura não pode ser simbólica ou
superficial; ela deve tocar o âmago da estrutura que mantém o Brasil refém de
interesses privados, disfarçados de projetos públicos. Mas, antes de falar em
ruptura, é preciso compreender o que é esse sistema, quem o compõe e como ele
opera — pois muitas vezes se fala de “sistema” como se fosse um conceito
místico ou difuso, quando na verdade ele é bem concreto, ainda que saiba se
disfarçar com eficácia.
O primeiro passo é compreender
que esse sistema pode ser composto por diversos grupos com funções específicas,
mas que, no fundo, atuam em harmonia, como engrenagens de uma mesma máquina. Em
certos momentos, parece haver disputa entre eles, mas essas disputas são mais
encenações de poder do que conflitos reais de projeto. Em outros momentos, tudo
funciona de modo coordenado, sobretudo quando o objetivo é evitar que uma força
externa ou popular ameace o controle que exercem sobre o país. Às vezes, essa estrutura
parece uma coligação de interesses; outras vezes, parece um único organismo com
múltiplas faces — e talvez seja mesmo as duas coisas ao mesmo tempo.
A forma como a política brasileira é percebida pela população contribui para a confusão. Os rótulos mais comuns — direita, esquerda, liberal, conservador, comunista — são usados de forma simplória e superficial, muitas vezes para esconder alianças reais e fabricar inimigos fictícios. A imprecisão desses termos impede que a sociedade identifique os verdadeiros antagonistas de sua prosperidade. Com isso, o debate político fica reduzido a torcidas organizadas, movidas por paixões e slogans, mas incapazes de compreender a complexidade do sistema que opera por trás dos palanques, partidos e manchetes.
Essa miopia política também
obscurece o eixo real do conflito brasileiro. Ao contrário do que se pensa, o
país não está dividido essencialmente em um confronto horizontal entre
ideologias — direita contra esquerda, conservadores contra progressistas. O verdadeiro
conflito é vertical: de um lado, uma pequena elite que detém o poder econômico,
jurídico e midiático; do outro, a imensa maioria da população, que vive sob as
imposições desse mesmo grupo, sem acesso aos instrumentos reais de decisão.
Essa elite se mantém no topo há gerações, explorando tanto o discurso da
mudança quanto o da estabilidade, conforme seus interesses exigem.
Um dos exemplos mais evidentes
dessa distorção da percepção política no Brasil é a oposição entre “petismo” e
“antipetismo”. Em teoria, o petismo deveria designar a adesão ao projeto
político do Partido dos Trabalhadores (PT). No entanto, esse termo é aplicado
de forma abrangente e imprecisa, englobando desde filiados partidários até
simpatizantes pontuais. Para além da sua base formal, o chamado petismo se
converteu em um símbolo genérico que muitas vezes ignora as contradições
internas do próprio partido — como se o PT fosse uma entidade homogênea,
quando, na prática, abriga diversas correntes, interesses e estratégias
conflitantes.
O antipetismo, por sua vez, é
ainda mais nebuloso. Ele não representa um projeto político alternativo, mas
sim uma identidade negativa, baseada na negação do PT. Ao transformar o PT no
epicentro do mal político, o antipetismo aglutina sob sua bandeira grupos
completamente distintos, inclusive contraditórios entre si. Isso resulta em um
paradoxo: muitos se unem para combater o petismo, mas não compartilham
absolutamente nada em termos de visão de país. O melhor exemplo disso talvez
seja o PSDB, partido que por décadas se posicionou como contraponto ao PT, mas
que hoje figura ao lado do petismo, com Geraldo Alckmin como vice-presidente de
Lula.
Essa lógica do “inimigo do meu
inimigo é meu amigo” se mostra falha quando aplicada à política real. O
antipetismo não produz coesão verdadeira, apenas uma ilusão de unidade que se
desfaz tão logo o PT sai de cena. Quando isso acontece, o vácuo deixado pela
ausência de um adversário comum escancara as divergências profundas entre os
grupos que compunham a frente antipetista. O sistema, então, se aproveita disso
para se recompor e seguir no comando. O que se apresenta como “mudança” nada
mais é do que uma reconfiguração de peças no mesmo tabuleiro, operada pelos
mesmos jogadores.
É por isso que, em uma análise
mais objetiva, petismo e antipetismo talvez sejam manifestações diferentes de
uma mesma lógica de dominação. Ambos servem, cada um a seu modo, para manter a
população dividida, mobilizada em torno de uma disputa superficial, enquanto o
verdadeiro poder permanece intacto. O petismo serve para agregar uma parte da
sociedade e mantê-la vinculada à promessa de progresso sob tutela do sistema. O
antipetismo serve para agregar a outra parte da sociedade em torno da promessa
de combate ao sistema — que, no entanto, termina com a entrega do poder às
mesmas elites de sempre. Em ambos os casos, o resultado é a perpetuação da
estrutura dominante.
Diante de tantas camadas de
subjetividade, distorção conceitual e manipulação emocional, torna-se urgente
adotar uma abordagem mais objetiva para compreender a realidade política do
Brasil. Conceitos como “democracia”, “autoritarismo”, “direita” e “esquerda”
são frequentemente utilizados de maneira inconsistente, moldados mais pela
conveniência ideológica do momento do que por critérios racionais. Países com
características autoritárias são chamados de democráticos por alguns e de
ditaduras por outros, conforme o alinhamento político de quem os julga. Isso
mostra que a linguagem política está em crise, contaminada pela emoção e pela
desinformação.
Para enfrentar esse cenário, é
fundamental fugir da subjetividade e resgatar critérios objetivos. Analisar
quem detém os meios de produção, quem controla os recursos do Estado, quem
decide o que será pauta na imprensa e quem manipula o Judiciário — isso oferece
uma leitura mais fiel da realidade do que qualquer rótulo ideológico. Essa
objetividade exige também maturidade política, algo ainda pouco presente no
debate público brasileiro. Desde que a política ganhou destaque popular a
partir das Jornadas de Junho de 2013, grande parte das opiniões tem sido
moldada por impressões superficiais e paixões momentâneas, amplificadas pelas
redes sociais, sem profundidade analítica ou embasamento histórico.
Essa carência de maturidade se
agrava com o desconhecimento histórico. Muitos brasileiros não compreendem que
o sistema que hoje os oprime é herdeiro direto das elites que derrubaram o
Império, dominaram a República Velha, enfrentaram e derrubaram Vargas, e
comandaram o regime militar. São as mesmas estruturas, com nomes diferentes,
mas com o mesmo DNA de poder e exclusão. Essas elites controlam a imprensa, o
sistema financeiro, as grandes indústrias, as federações empresariais e,
principalmente, o Judiciário. Elas conseguem misturar o pior do liberalismo —
em sua forma mais predatória — com o pior do autoritarismo estatal, formando um
Estado que arrecada muito, entrega pouco e, ainda assim, vende as migalhas
públicas a preços simbólicos para os mesmos grupos de sempre.
Assim, o caminho para o Brasil
dar certo passa por uma ruptura dessa lógica perversa. É necessário que a
sociedade compreenda que o verdadeiro conflito não se dá entre direita e
esquerda, mas entre o topo e a base da pirâmide social. Essa é uma luta vertical,
não horizontal. Para que ela avance, será preciso que forças genuinamente
insatisfeitas com o sistema se unam — ainda que minimamente — e que haja, com
realismo, uma articulação até mesmo com setores do próprio sistema que estejam
dispostos a enfraquecer os seus atuais dominadores. Caso contrário,
continuaremos presos a ciclos de frustração, onde a simples derrota do petismo
ou a ascensão de qualquer oposição momentânea não significam avanço, mas apenas
mais uma troca de fachada no velho edifício do poder.
Título, Imagem e Texto: Kim D. Paim, X, 11-5-2025, 9h57
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