quarta-feira, 28 de maio de 2025

A virtude pode ser ensinada?

E eis que, entre uma mamadeira e outra, fui surpreendido por uma daquelas pérolas de internet: o cérebro moral "fica pronto" aos cinco anos

Rafael Nogueira

Ser pai me devolveu ao filósofo que fui. Ao filósofo que, estudando o desenvolvimento moral, buscava conciliar Aristóteles com as neurociências, unir a Ética a Nicômaco com a psicologia de laboratório, cruzar o velho mestre do Liceu com exames de ressonância magnética.

Não que eu tenha deixado Aristóteles de lado. Ele continua lá, esperando na estante enquanto eu troco fralda. Só que agora, além das Éticas, há também a ética de dormir pouco. 

E eis que, entre uma mamadeira e outra, fui surpreendido por uma daquelas pérolas de internet: o cérebro moral “fica pronto” aos cinco anos. Pronto. Aos cinco. Como se fosse uma torta no forno. E o que faço com meu filho de um? Tenho apenas quatro anos para formar sua compaixão, sua honestidade, seu senso de justiça. Depois disso, game over? Não é bem assim. E graças a Deus.

A ciência consistente indica que, sim, aos cinco anos a criança já diferencia certo e errado, sente empatia, reconhece que não se bate no coleguinha. Há até pesquisas com bebês de colo que preferem personagens que ajudam em vez dos que atrapalham. Instinto, talvez. Ou Deus soprando na orelha. Mas isso está para a maturidade moral como uma fundação de concreto está para a catedral. A estrutura essencial está lá; falta o templo, a torre, o sino e o bispo.

O cérebro chega a 90% do volume adulto por volta dos cinco anos. Mas o córtex pré-frontal — aquele que nos torna propriamente humanos, que pondera, julga, reflete, controla impulsos — só amadurece de fato na vida adulta. Aos cinco, a criança sofre com a dor alheia, mas ainda julga as ações pelo estrago visível, não pelas intenções invisíveis. Dos seis aos doze anos, começa a distinguir regras morais de convenções sociais, tenta enxergar com os olhos do outro, pergunta o que poderia ter feito diferente. Na adolescência, outro terremoto neural: os circuitos se reorganizam, e o que se aprendeu pode ser reforçado. Ou esquecido. 

Lawrence Kohlberg mapeou esse processo em estágios. Primeiro, o medo da punição. Depois, o desejo de aprovação. Só mais tarde surge a virtude autêntica, aquela que age não por pressão externa, mas por convicção interna. Para Jean Piaget, a criança que parece moralmente mais desenvolvida é um imitador de ordens, capaz, porém, de se tornar alguém que compreende as razões, escolhe por si e constrói o caráter com alicerces próprios.

A modernidade, sempre ela, respondeu com aquele ar blasé: "virtude", ora, é coisa do patriarcado. Trocou-se a palavra por "habilidades socioemocionais", que ninguém sabe o que são, mas soam modernas. O resultado: jogaram fora o conteúdo e ficaram com o rótulo.

Talvez por isso MacIntyre — que nos deixou semana passada aos 95 anos — tenha dito que falamos em “virtude”, “justiça” e “bem” como quem recita palavras de um idioma esquecido. Perdemos o enredo. E sem enredo, não há personagem, nem formação. A virtude, dizia ele, só sobrevive em tradições encarnadas, em histórias compartilhadas. Deixo esta reflexão como homenagem ao filósofo escocês que nos ensinou que formar alguém é também narrar — e viver — uma vida que faça sentido.

Só que há uma nostalgia no ar. Uma sede disfarçada. Os mais atentos já perceberam: educar não é adaptar a criança ao mundo; é apontar o bem, fazer com que ela o deseje, e ajudá-la a praticar. É como esculpir. Tirar o excesso. Descobrir a forma por dentro.

No diálogo Protágoras, Sócrates duvida que a virtude se ensine como matemática. Não se transfere por aula expositiva. Exige convivência, tempo, bons exemplos, e, quem sabe, um ou outro milagre. Do outro lado do mundo, Confúcio dizia o mesmo em outra língua: a virtude começa com o respeito aos pais e floresce pelo hábito, pela disciplina, pela harmonia entre palavras e gestos. Ela é, antes de tudo, imitação do que se ama.

O problema é que os pais modernos têm medo. Medo de corrigir, de frustrar, de ferir. Preferimos deixar pra lá. "Ele vai entender quando crescer." Vai. Mas entender o quê? Sem exigência, sem referência, sem aquele olhar que diz "eu te amo demais pra deixar você virar um idiota", o que sobra é fragilidade. E frágil não resiste a ideologia nenhuma. Vira militante de qualquer coisa. Infâncias sem esforço não produzem liberdade, produzem fragilidade.

Não se ensina virtude como se ensina a usar uma calculadora. Mas ela se aprende pela presença. Filhos aprendem a ser corajosos quando testemunham coragem, a ser justos quando observam justiça, a buscar sabedoria quando convivem com quem a aprecie com genuíno prazer.

Ainda assim, o exemplo não garante tudo. Há filhos que rejeitam, zombam ou contradizem os pais. De novo, a transmissão da virtude não é fórmula matemática. Mas a ausência — essa sim — é certeza de ruína.

Virtude se aprende como a música: com talento natural, prática constante e um mestre que saiba tocar a alma.

Assim se salva uma geração. Ou, com sorte, um filho por vez.

Título e Texto: Rafael Nogueira, O Dia, 28-5-2025 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-