sábado, 31 de maio de 2025

[Versos de través] Decrepitude

Maria José Leal

Não são as rugas nem as cãs 
Que fazem decrepitude
Quem as faz são os gestos
Hesitantes, obsessivos, inconsequentes
É a postura, o equilíbrio estático
O centro de gravidade corporal
O alinhamento ósseo, o tônus muscular
Os proprioceptores, o labirinto
Os sentimentos do tempo

Mas quem faz decrepitude mesmo a sério
É a linguagem, o discurso repetitivo
Passadista e caturra, a onstinação
De descrever maleitas, tisanas
Mezinhas naturais ou o último grito
Sintético de laboratório
O relato da cor da urina, da dor na anca
Da insônia, das palpitações, da azia
Das traquinices e sucessos dos netos
Do nauseante prognóstico do futuro

Face a face mirando rugas e cãs
Parodiando gestos e discurso
Galhofando sobre decrepitude
Que bom falar contigo do eterno passível
Da conservadora estática da forma
Da variante mutável da ontogenia 

Que bom falar contigo do absoluto eterno
Dos desígnios adivinhados, da gratidão
Pelo olhar de Deus sem olhos que nos abrange
Que bom falar contigo das coisas simples
Dos milênios de pedra fundida, das folhas soltas
Dos cavalos, dos cães e dos mosquitos

Maria José Leal

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Presença 
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Meu retrato de comunhão 
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