Mais do que se preocupar com a duração dos mandatos eleitorais, os políticos deveriam zelar pelo papel das instituições e deixar de olhar apenas para os próprios interesses
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Arte: Paulo Márcio |
Nuno Vasconcellos
A ideia de acabar com a
reeleição para os cargos executivos e de fixar em cinco anos os mandatos de
todos os políticos eleitos no Brasil, já vinha circulando com tanta
desenvoltura no Congresso que sua aprovação era dada como certa mesmo antes de
ser levada à apreciação da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.
Tanto isso é verdade que a Proposta de Emenda Constitucional que trata do
assunto — apresentada pelo senador Jorge Kajuru (PSD/GO) e relatada por Marcelo
Castro (MDB/PI) — foi aprovada com alguns ajustes, sem envolver polêmicas nem
bate-boca entre a direita e a esquerda, em sessão na quarta-feira passada.
Não houve sequer a necessidade
de contagem de votos. Todos estavam do mesmo lado. E é aí que o assunto começa
a merecer atenção redobrada: sempre que um projeto dessa envergadura é aprovado
sem discussões, sem divergências e sem consultas públicas, a sociedade pode ter
certeza: os interesses dos políticos estão colocados à frente dos seus — o que
não chega a ser uma novidade do Brasil. A matéria, agora, será levada à
apreciação do plenário. Se receber o apoio de pelo menos 54 dos 81 senadores —
número que deverá ser superado sem dificuldade —, seguirá para a Câmara dos
Deputados.
Ali também não deverá
enfrentar maiores resistências. Aliás, é provável que o presidente da Casa,
Hugo Motta (Rep./PB), esteja ansioso, à espera de colocá-la em discussão. A
verdade é que Motta tem se apegado a qualquer desculpa que encontre pela frente
para tentar aliviar a pressão que vem recebendo desde que decidiu transformar
a Mesa Diretora da Câmara numa espécie de despachante dos interesses do
Executivo e do Judiciário junto ao poder Legislativo.
Sem se preocupar em esconder
sua subserviência aos outros dois poderes, Motta tem resistido com todas as
forças ao pedido de instalação da CPI desejada por toda sociedade para
investigar o assalto bilionário aos aposentados do INSS. E, para completar, finge
que o projeto apoiado por boa parte dos deputados, que pretendem anistiar os
condenados pelas manifestações do dia 8 de janeiro, simplesmente não existe.
Desde que se sentou na cadeira de presidente, ele nada mais fez do que
subordinar os interesses do Poder Legislativo (e, portanto, a sociedade que ele
deveria representar) aos do Executivo e do Judiciário.
FOGUEIRAS DE SÃO JOÃO
É lamentável, mas é a mais pura verdade. Motta não tem se mostrado à altura de presidir um Legislativo que deve trabalhar em harmonia com os demais, como estabelece a Constituição, mas que não pode abrir mão de sua independência. Ele não perde a pose de autoridade, é verdade, mas age como se não passasse de um ordenança do Executivo e do Judiciário. Só faz o que os outros poderes consentem que faça e não se cansa de ir atrás de pautas secundárias para dar a impressão de que ele ainda tem algum poder.
Na semana passada, por
exemplo, enquanto o Brasil cobrava uma atitude do Congresso em relação ao
assalto ao INSS, Motta criou um Grupo de Trabalho que, segundo ele, terá 45
dias de prazo para elaborar uma proposta de Reforma Administrativa para o
governo federal. Sua Excelência deve ter se dado conta de que a sociedade, de
fato, tem dado sinais de exaustão diante da qualidade lamentável do serviço
público brasileiro — e que os cidadãos adorariam ter pelo menos a quem reclamar
do péssimo atendimento que recebem toda vez que precisam recorrer ao Estado
para qualquer assunto. Isso é verdade.
Acontece, porém, que a
sinceridade da preocupação que o presidente da Câmara manifesta em relação à
qualidade da administração federal cai por terra no momento em que ele tenta
impedir com todo o poder da autoridade de seu cargo que a Casa investigue a roubalheira
no INSS. Se ele estivesse minimamente interessado em melhorar a qualidade do
serviço público, seria natural que desse preferência à solução do problema mais
urgente, não é mesmo? Só que não.
O que o assalto aos
aposentados tem a ver com a ideia da Reforma Administrativa? Ora, apenas uma
questão de prioridade. Pensar em reformar toda estrutura do serviço público e,
ao mesmo tempo, virar as costas para o problema agudo que, neste momento, incomoda
ao país inteiro é o mesmo que, diante da descoberta de um vazamento no
encanamento da cozinha, o proprietário de um imóvel deixe de providenciar o
conserto do cano furado com a desculpa de que tem o plano de, um dia, por tudo
abaixo e reconstruir a casa tijolo por tijolo.
Em tempo: o prazo de 45 dias
que o presidente da Câmara estabeleceu para a conclusão da tarefa vence no
próximo dia 6 de julho, um sábado. Acontece, porém, que o Congresso Nacional,
como até carpete do Salão Verde sabe, não tem o hábito de pegar no batente no
mês de junho, quando acontecem as festas tradicionais, dedicadas a Santo
Antônio, São João e São Pedro na região Nordeste. Será que a turma vai deixar
de comparecer ao forró e às fogueiras que começam a arder já no próximo final
de semana para cumprir a missão que foi dada por Motta?
Seja como for, se o prazo for
mesmo cumprido, e sem qualquer discussão sobre a qualidade das propostas que
vierem a ser apresentadas, Motta receberá os devidos pedidos de desculpas da
coluna caso tenha algo a apresentar em julho, quando se inicia o recesso
parlamentar. À primeira, à segunda e à terceira vistas, a possibilidade de que
ele tenha algo a mostrar na data marcada, com toda sinceridade, é muito próxima
de zero.
Num cenário como esse, receber
do Senado um projeto como o que dispõe sobre o fim da reeleição e a alteração
do tempo de mandato dos cargos eletivos, pode trazer um pouco de paz ao
presidente da Câmara. Isso, porém, não elimina as dúvidas em relação aos interesses
que existem por trás do fim da reeleição e da unificação dos mandatos em cinco
anos. Qual é, em primeiro lugar, a necessidade de lidar com esse problema
justamente agora? Outra questão: o que existe de tão ruim no atual modelo que
exija uma mudança tão profunda como a que está sendo proposta?
DEU TUDO ERRADO
Essas questões devem ser
respondidas por etapas. Vamos lá: as eleições de 2026 darão início a um
processo de mudanças que resultará, a partir do pleito de 2034, na coincidência
de todos os mandatos eletivos do país. Isso mesmo: todos! A ideia é que o presidente
da República, os governadores e os prefeitos de todos os municípios brasileiros
sejam eleitos para períodos de cinco anos — um a mais do que o mandato atual —
e não tenham direito à reeleição. Os senadores, deputados federais, deputados
estaduais e vereadores também mandatos de cinco anos — que, a exemplo do que
acontece atualmente, poderão ser renovados nas eleições seguintes.
O único ponto controverso no texto original era o que estendia de oito anos para dez anos os mandatos no Senado. Alguns senadores de bom senso, como Carlos Portinho (PL/RJ), Eduardo Girão (Novo/CE) e Jorge Seif (PL/SC), para o efeito devastador que a aprovação dessa proposta teria sobre a opinião pública e propuseram que o mandato dos senadores, como os dos demais, fosse fixado em cinco anos. Felizmente, foram atendidos. Pelos critérios de equalização previstos no projeto, os senadores eleitos em 2030 terão um mandato de nove anos. Em 2034, o mandato será de cinco anos. A partir de 2039, cada estado passará a eleger três senadores a cada eleição.
O projeto, à primeira vista,
tem um objetivo nobre, sobretudo no que diz respeito aos cargos executivos. Ele
parte do princípio de que o instituto da reeleição, aprovado em 1997, durante o
primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, não deu certo. A ideia que
motivou a adoção desse critério partia do princípio de que um mandato de quatro
anos era insuficiente para que o político apresentasse, aprovasse e executasse
projetos relevantes — sendo necessário mais tempo para realizar tudo o que
tinha sido prometido ao povo. Optou-se, então, por criar um mecanismo que desse
ao eleitorado a oportunidade de avaliar o governo do presidente, dos
governadores e dos prefeitos.
O eleito ganharia o direito de disputar a eleição seguinte e, se vencesse, poderia ficar mais quatro anos no poder. Seria uma espécie de teste de qualidade do mandato. Deu tudo errado. Desde que o mecanismo foi posto em prática, os políticos passaram a se preocupar mais com o próprio futuro do que com o futuro do país. Ao invés de propor medidas estruturantes, como se espera dos governantes de um país onde há tanta coisa para fazer, os governantes eleitos, de um modo geral, se dedicaram a projetos populistas, superficiais e cada vez mais onerosos para os cofres públicos. “A experiência acumulada em quase trinta anos de vigência da regra da reeleição não correspondeu às expectativas”, disse o relator do projeto, senador Marcelo Castro.
VOTAÇÃO DO ORÇAMENTO
A ideia de fixar os mandatos do Executivo em cinco anos, induz a uma renovação dos quadros políticos que é mais difícil no modelo atual e, a princípio, deve ser recebida como uma mudança positiva. Mas, mais importante do que o tempo do mandato é o uso que se faz dele. O problema da reeleição não é o tempo estendido do mandato, mas a forma como os políticos o exercem.
A pergunta a ser feita é: a culpa pelo fracasso da reeleição é do tempo de
mandato ou da forma com que os políticos brasileiros o exerceram? A comparação
óbvia, nesse caso, é com os Estados Unidos. Desde a eleição de George
Washington, em 1789, todos os presidentes do país foram eleitos para mandatos
de quatro anos, com direito à reeleição. Até 1947, todos os presidentes
poderiam concorrer a quantas eleições quisessem, mas o único que excedeu dois
mandatos foi Franklin D. Roosevelt. Depois dele, cada presidente passou a ter
direito a apenas dois mandatos, consecutivos ou não. Por que um dispositivo que
dá certo há mais de dois séculos nos Estados Unidos não resistiu a três décadas
no Brasil? Por que a reeleição dá tão certo para eles e deu tão errado para o
Brasil?
Todas as respostas aceitáveis
para essa questão passam pela consistência do arcabouço institucional de cada
um dos dois países. Nos Estados Unidos, as atribuições de cada um dos três
poderes são nítidas e os governantes eleitos estão sujeitos a um acompanhamento
atento de toda a sociedade. Desde que cada um faça aquilo que tem a
responsabilidade de fazer, a possibilidade de interferência de um sobre o outro
é mínima e circunscrita a casos de desvios flagrantes da lei. O Legislativo
americano serve para legislar, o Judiciário para cuidar das leis e o Executivo
para tocar o governo.
Não existe por lá, por
exemplo, a hipótese de que o Congresso deixe de aprovar uma lei simplesmente
porque a Suprema Corte pode não gostar da decisão. O Legislativo americano tem
poder diante dos demais. Mas, também, tem obrigações que podem se voltar contra
ele se não forem cumpridas à risca. Um exemplo é o orçamento. Se a peça não for
votada no prazo definido em lei, o governo simplesmente fica sem recursos para
manter a máquina em funcionamento.
Isso mesmo. Sem autorização
legislativa, o dinheiro não pinga nas contas de nenhum órgão público americano,
nem do próprio Congresso. Como essa questão é levada a sério, os deputados e
senadores de lá simplesmente não ousam fazer como os brasileiros, que tratam o
orçamento federal apenas como uma formalidade que todo ano pode ser empurrada
com a barriga e, no ponto de vista deles, parece destinada apenas a garantir
que haja dinheiro para as emendas que eles apresentam. Nos Estados Unidos, eles
discutem a questão a fundo e deliberam sobre um documento que é executado à
risca pelo Executivo. Por aqui, vigora a farra que todo mundo conhece.
O sistema dos Estados Unidos é
perfeito? Claro que não. Acontece, porém, que, em qualquer democracia que
mereça ser chamada por esse nome, o respeito às instituições e aos limites de
cada uma delas é pré-requisito para o exercício de qualquer função pública. Por
lá, os políticos é que precisam adequar seus interesses às regras que regem o
processo político. No Brasil, quando as circunstâncias e as regras do jogo
deixam de atender às conveniências dos políticos, mudam-se as leis para que
elas possam atendê-los.
FINANCIAMENTO ELEITORAL
É aí que as razões que movem
os políticos nessa história da unificação dos mandatos começam a ficar mais
claras. Desde que o Legislativo renunciou ao poder de representar a sociedade e
passou a se preocupar quase que exclusivamente em garantir seu poder de
execução orçamentária (função que, em governos sérios, é exclusiva do Poder
Executivo), a questão da duração dos mandatos do presidente, dos governadores e
dos prefeitos tornou-se secundária (para não dizer irrelevante).
Isso mesmo! A preocupação com
a duração de um mandato e com o prazo para a implantação de projetos de longo
prazo só faz sentido num cenário em que as responsabilidades de uns não se
misturam com as dos outros. Na medida em que os deputados e senadores parecem
preocupados exclusivamente em pôr a mão no dinheiro das emendas para financiar
obras de pequeno porte em seus currais eleitorais, em financiar ONGs tocadas
por seus aliados ou em participar da execução das emendas secretas — em que
ninguém sabe o destino do dinheiro —, um ano a mais de mandato significa, na
prática, um aumento de 20% no prazo que os detentores de mandatos legislativos
terão para gastar dinheiro público para financiar seus próprios interesses.
Uma outra questão a ser
observada nessa história é a das eleições e a da bolada que os partidos
políticos recebem por meio dos indecentes Fundo Partidário e Fundo Eleitoral. A
título de informação, a bolada no ano passado, quando houve eleições municipais,
foi bem polpuda. Foram mais de R$ 4,9 bilhões do fundo eleitoral e mais ou
menos R$ 1,1 bilhão do fundo partidário. Somem-se esses valores e o resultado,
R$ 6 bilhões, é muito parecido com o dinheiro que os fraudadores do INSS
desviaram dos aposentados. Se é assim, por que Suas Excelências, que, pelo regime atual, põem a mão numa
bolada desse tamanho a cada dois anos, estariam preferindo fazer uma eleição a
cada cinco anos?
Na opinião dos defensores da
medida, a sociedade brasileira está cansada de viver em clima de eterna disputa
eleitoral e o fim da possibilidade de reeleição fará com que os políticos
passem a se preocupar com as obrigações do mandato conquistado ao invés de
ficarem o tempo todo tomando medidas de caráter superficial e populista com os
olhos voltados para o mandato seguinte.
Isso, claro, é verdade. O problema é que os políticos brasileiros — como se viu recentemente na votação da matéria que aumentou para 531 o número de deputados federais, que atualmente é de 513 — não demonstram a menor preocupação com o que a sociedade deseja ou deixa de desejar. Eles são incapazes de aprovar uma única matéria que toque, ainda que superficialmente, em seus privilégios, e toda e qualquer decisão que tomam em relação aos critérios eleitorais e aos prazos de mandatos têm como único objetivo tornar para eles a situação mais fácil do que já é. Ou melhor: de promover mudanças que parecem profundas para, no final das contas, deixar tudo exatamente como está.
Título e Texto: Nuno Vasconcellos, O Dia, 25-5-2025
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