Aparecido Raimundo de Souza
Seu reflexo, que antes parecia tranquilo e confiante, agora estava dividido em pelo menos dez versões de si mesmo, cada uma refletindo ou descambando para uma expressão diferente do mais puro arrependimento. Como todo bom estrategista em momentos de crise, Josinandro ponderou as suas opções: E quais seriam elas? Pelas lentes do seu martírio, dava para se perceber que o que sobrara do colossal objeto que a sua mãe mandara fazer com carinho e esmero, fazia parte agora de um estrago sem precedentes. Para corroborar a sua ideia destruidora, postaria no seu Instagram uma mensagem com a legenda “A débil fragilidade da existência acabou em frangalhos como se fossem grãos de areia. ” Será que alguém se importaria? Não tinha lá muita certeza. Talvez fosse mais inteligente ter comprado um tubo de Super Bonder e tentado remontar o espelho como se fosse um quebra-cabeça desses que vem com mais de três mil peças. Havia também a ideia de ficar parado fingindo que nada tinha acontecido, esperando que a física resolvesse o problema por conta própria. O que será que Josinandro escolheu?
Até hoje ninguém sabe. Nem ele. Todavia, por baixo dos tapetes da sala enorme, dizem que, se qualquer um que olhasse para aquele espelho trincado, ainda poderia ver a sombra de um prego filho da puta que começou como o pivô causador de tudo. O fato concreto é que após a destruição inesperada do fabuloso espelho, Josinandro percebeu um problema ainda maior do que os cacos espalhados pelo chão: seu reflexo simplesmente sumira. Isso mesmo. Ele olhou para o que restara do pobre espelho e observou que não havia mais imagem para contar história. Como se de repente tivesse quebrado também a conexão entre ele e o universo dos reflexos. Será que ele, (o reflexo?), não importa —, será que a nitescência ou a cintilação que viera colada ainda existia, ou, pelo menos um pedacinho dela por pura sorte habitava no mundo real? Apavorado e sem uma ideia concreta, Josinandro numa espécie de martírio a olhos vistos, saiu de fininho e no laboratório de sua escola iniciou uma série de testes científicos que segundo a sua imaginação, comportavam extrema complexidade: Por primeiro, tentou abrir a câmera frontal do seu celular (a tela ficara preta —, pânico total).
Furtivamente se aproximou de uma loja de roupas para testar outro espelho. Tropeçou antes de chegar às portas, num morador de rua, que dormia e roncava. Com o susto, assimilou logo em seguida, que não havia reflexo, o que o fez perder totalmente a noção do espaço por onde caminhava). Implorou a um amigo, que achou, por acaso, na barbearia, o Bráulio Pedregoso, para que ele tirasse uma foto sua (mas, até nesse instante, sabe-se lá por qual motivo ou circunstância, misteriosamente, a chapa capturou apenas um prego flutuando no ar). Diante do impasse, e mais que impasse, o medo circunspecto aflorado em grau máximo, Josinandro aceitou seu destino: viver como um ser sem revérbero, tipo um fantasma errante da decoração mal planejada. Entretanto, dias depois, eis que surgiu a solução inesperada: ao passar perto de um chafariz (a alvenaria ornamental se moldava em um menino mijando em frente da igreja matriz do bairro onde residia), Josinandro capturou seu rosto abatido refletido melancolicamente em meio ao xixi do guri que se misturava à fonte.
De fato, sem tirar, nem pôr, aniquilado e decrépito se sentiu feliz! Pelo menos sabia que apesar de horripilado, tudo ainda existia! Entretanto, havia um detalhe crucial. O seu narciso estava literalmente debaixo de uma escuridão pegajosa, como se tivesse sido transportado para outra dimensão além da Terra. Acobardado, completamente fora de si, e pior, sem pensar duas vezes, pulou e se agarrou no pinto do moleque mijão, e, em seguida, mergulhou… e foi recebido (imaginem que loucura!) melhor dito, recepcionado pelo Sindicato dos Reflexos Inutilizados. Esse, um grupo de seres revoltadíssimos e enraivecidos explicou que, após tantas tentativas desastrosas de pendurar coisas em lugares impróprios e inadequados, eles decidiram criar uma sociedade própria. Josinandro apesar de meio abestalhado, foi autorizado a recuperar o seu reflexo, porém, teve que assinar um contrato se comprometendo a nunca mais tentar pregar nada em superfícies consideradas melindradas. Agora, por conta desse acordo, sempre que alguém vê a sua figura perto de um espelho com um martelo, um tipo de diabinho meio abichado aparece antes mesmo de ele começar se posta apontando o dedo em riste, desaprovando, e pronto para fazê-lo desaparecer outra vez.
Entre tapas e bordoadas, como ele se sente agora quando tenta usar o martelo diante de um novo espelho? Permanece totalmente frustrado? Com certeza. Josinandro, tem uma relação complicadíssima com espelhos e martelos — um verdadeiro drama existencial digno de um bom folhetim para os grandes temas novelísticos da Rede Globo. Sempre que se aproxima de um espelho, ou melhor dito, sempre que se vê diante de um, com um martelo na mão, “seu eu oculto” surge na berlinda antes mesmo de ele levantar o braço. E não é um ato comum — nada mais que um entrave povoando a cena de braços cruzados, com aquele olhar julgador de peixe morto, melhor dito, aquele de quem já sabe por antecedência, que tudo vai dar errado. Josinandro, por dentro, sente uma mistura de frustração e medo. Ele quer muito poder pendurar coisas sem causar falhas dimensionais. Também não pretende deixar sair no ralo o maleficio alacranado outra vez. Ele então decidiu fazer um teste. Aproximou o martelo devagar… o reflexo começou a desaparecer. Ele recuou… o reflexo voltou e apontou um dedo, tipo um professor brigando com um aluno desligado e mergulhado no seu mundinho impenetrável.
O dilema é vivo e se faz real: pendurar um quadro ou manter a sua identidade intacta? Josinandro, preso nesse embaraço, desistiu. Largou o martelo, aceitou o destino e decidiu que nunca mais mexeria com espelhos. Entre tapas e beijos, num determinado dia ele pensou com seus botões: “E se eu usasse fita adesiva?” E lá no fundo bem profundo do “seu ego” espelhado, se viu colocando as mãos na cabeça em vista de um desespero colérico e neurastenicamente descontrolado. Depois dessa sua experiência traumática, tentou seguir a sua vida normalmente. Entretanto, havia um problema sério: o reflexo furioso nunca o perdoou. Por conta, toda vez que passava por um espelho, a sua imagem surgia com cara de poucos amigos, como se estivesse pronta para dar uma bronca em forma de porrada. Em um dia particularmente tenso, Josinandro, ao se barbear, se muniu de coragem.
Escreveu em letras garrafais, e, em seguida, segurou o que havia grafado: “NEM PENSE NISSO”. Porém tudo piorou. A cena do espelho depauperado se transformou voltando ao fatídico dia em que ele decidiu novamente pendurar um novo quadro. Como da primeira vez, passou os cinco dedos num martelo. O reflexo, como por encanto, apareceu instantaneamente. Pintou no pedaço suando frio, segurando um telefone imaginário, já pronto para chamar os bombeiros. Josinandro ignorou. Levantou o martelo. O reflexo pulou para trás, como se estivesse fugindo de uma explosão iminente. E sem mais delongas, bateu o prego… e foi nessa hora que tudo saiu do controle. O vidro do espelho tremeu. O chão vibrou. As luzes piscaram. E então… o reflexo SE SOLTOU. Isso mesmo. Josinandro viu a sua própria imagem saindo do espelho, estabanada, agora uma entidade independente.
O reflexo estava para lá de furioso. Ele pegou o martelo e começou a persegui-lo pela casa. A certa altura, uma voz ingurgitou o ambiente: "VOCÊ NÃO APRENDEU NADA MESMO, SEU SAFADO?!" —, berrou o reflexo. Josinandro correu, tentou se esconder, mas não adiantou — onde houvesse um reflexo, seu perseguidor aparecia. Na tela da TV desligada, no display do celular, até no ecrã do forno de micro-ondas! Josinandro, passou a ser um homem marcado pelo terror meio que aborígine dos reflexos revoltados. Foi daí que ele teve uma ideia. Se mudar de mala e cuia da casa de seus pais para uma quitinete onde não houvessem espelhos. Arranjou uma às pressas. Ao se instalar, se trancou deixando todo o ambiente às escuras. Respirou aliviado. Finalmente estava seguro. Em dado momento, ao espiar para uma poça d’água no chão da cozinha, voltou a dar com os bugalhos de fuça com o reflexo de braços cruzados, esperando pacientemente por ele: “Josinandro” — disse o intruso, de volta: “A GENTE PRECISA CONVERSAR.” Talvez por isso, até hoje, Josinandro nunca mais usou um martelo perto de superfícies virginais. Para evitar problemas futuros, segue pendurando quadros em casa de clientes, amigos e vizinhos, e ganhando o seu dinheirinho. Porém, o faz com fitas adesivas, recitando, enquanto trabalha, preces silenciosas seguidas de promessas eternas de não irritar novamente o mundo dos reflexos. Até agora, tem dado certo.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Basílica do Santuário de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém do Pará, 23-5-2025
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