terça-feira, 20 de maio de 2025

[Aparecido rasga o verbo] Os cegos e o eterno caos urbano

Aparecido Raimundo de Souza

DOIS AMIGOS completamente cegos Zeca e Toninho, chegam à beira de uma avenida movimentada no centro de São Paulo.
Zeca: — Beleza, Toninho. Galgamos a parte mais crítica da nossa missão.
Toninho: Que missão?
Zeca: — Atravessar essa avenida sem virar mais um número na estatística!
Toninho: — Perfeito. Como vamos fazer isso da próxima vez?
Zeca: — Eu pensei num plano infalível.
Toninho: — Tomara que seja melhor que aquele do elevador.
Zeca: — O elevador não foi minha culpa. Quem mandou colocarem dois botões iguais no painel que acessam os andares?
Toninho: — Certo, qual o plano aqui?
Zeca: — Vamos ouvir as buzinas!

Toninho: — E como isso nos ajudará?
Zeca: — Se ouvirmos buzinas muito perto, ficamos parados. Se estiverem mais longe, aí sim, andamos.
Toninho: — Isso não é um plano. Isso é um pedido de atropelamento em tempo real.
Zeca: — Confia em mim, Toninho! Eu sou um mestre da leitura sonora urbana!
Nesse momento, ao redor deles, sons de buzinas ensurdecedoras.

Toninho: — Zeca, eu acho que ouvi uma nova leva de trombetas sem noção. Isso foi perto ou longe?
Zeca: — Perto demais.
Toninho: — E agora?
Zeca: — Agora é fé em Deus e passo firme! Em frente...
Ambos avançam com cautela, mas no meio do caminho…
Toninho: — Espera! Tem uma mão no meu ombro!

Zeca: — O que, Toninho?
Toninho: — Alguém me pegou pela mão!
Zeca: — Então pergunta se é um assaltante ou um anjo da guarda!
Ao ouvir essas palavras, o estranho tenta ser gentil:
— Pelo amor de Deus, vocês estão atravessando na frente do ônibus!

Toninho: — Ah, então é um cidadão preocupado...
Zeca: — Avisa para ele que estamos confiantes.
Voz Estranha: — Que mal pergunte: confiantes no quê?!
Zeca: — Na lei da sobrevivência urbana!
O desconhecido arrasta os dois com a maior cautela para o outro lado da calçada.
Toninho: — Ufa, chegamos vivos.
Zeca: — Vivos, sim… mas cá entre nós, humilhados.

Toninho: — Esquece. Vamos em frente...
Toninho e Zeca agora em segurança no outro oposto, enfrentam um novo desafio. De repente, uma tempestade de ventos inesperados sopra a todo vapor.
Zeca: — Beleza, sobrevivemos à primeira tentativa.
Toninho: — Sim, Zeca. Mas agora temos um problema novo.
Zeca: — Pelo amor de Deus, qual?

Toninho: — Tem um cachorro me seguindo...
Zeca: — Como assim te seguindo?
Toninho: — Sinto ele aqui do meu lado… tá respirando forte.
Zeca: — Pergunta se ele tem alguma dica de navegação. 
Toninho: — Amigo, você sabe atravessar avenidas?
Em meio ao burburinho das pessoas, carros e ônibus os dois amigos ouvem apenas latidos.
Toninho: — Nada útil.

Zeca: — Talvez seja um guia voluntário.
Toninho: — Ou só quer um biscoito para mastigar enganando a fome.
Zeca: — Ignora esse bicho. Vamos continuar...
Toninho e Zeca avançam. Todavia, o fazem à esmo.
No meio do caminho, surge um motoboy. A criatura freia ao mesmo tempo em que grita.

Motoboy, aos berros: — Vocês dois são malucos?
Zeca: — Um pouco, sim!
Motoboy: — Atravessar essa via assim? Sem ajuda? Querem ver Deus mais cedo?
Toninho: — Se quiser nos ajudar, estamos aceitando. Motoboy: — Eu não faço seguro para isso!
Zeca: — Então, meu amigo só torce por nós e deixa que Deus faça o resto!
O motoboy acelera, buzina e desaparece no trânsito.

Toninho: — Pronto, Zeca. Agora temos duas preocupações.
Zeca: — Diz ai, Toninho: O cachorro continua no seu pé?
Toninho: — Continua. Ei espere! Acho que tem um policial vindo na nossa direção.
Zeca: — Como sabe? Você é cego ou está mentindo? Deixa pra lá. O policial que está vindo... isso pode ser bom como pode ser ruim...
Toninho: — Ele está falando no rádio.

Policial: — "Central, temos dois cidadãos tentando chegar a algum lugar. Parecem perdidos."
Toninho: — Talvez ele nos dê uma direção.
Policial: — Senhores, boa tarde. Precisam de ajuda?
Zeca: — Depende. Essa ajuda vem com ou sem multa?
Policial, rindo: — Sem.
Toninho: — Então aceitamos.

O policial guia os dois rapazes para um outro local. Um prédio com dois bancos na porta de entrada. O cachorro os segue. Quando chegam…]
Zeca: — Fim da linha perigosa!
Toninho: — Sim!
Policial: — Vocês sabem que tem faixa de pedestres a dez metros daqui, né?
Zeca: — Sim… mas seu guarda, onde fica a emoção nisso?
O policial suspira. O cachorro abana o rabo e senta.

Toninho: — E agora?
Zeca: — Agora vamos almoçar.
Toninho: — E o cachorro?
Zeca: — Ele almoça com a gente.
Nessa altura dos acontecimentos, temos um cachorro aparecido do nada, um motoboy irritado, um policial confuso e uma travessia repletada de risco iminentes.

Depois de galgarem uma nova avenida com a ajuda do policial, Zeca, Toninho e o cachorro misterioso chegam a uma praça cheia de árvores. Nela, algo estranho acontece.
Toninho: — Zeca…
Zeca: — O quê?
Toninho: — Já reparou que tem uma multidão nos olhando?
Zeca: — Como assim?
Toninho: — Eu tô ouvindo cochichos… e palmas.
Zeca: — Isso significa que acabamos de virar um evento público.
Toninho: — Ou um protesto, vai se saber agora, com a precisão devida...
Zeca: — Ou, no pior dos mundos, um “flash mob” espontâneo.

Toninho: — Ou só uma turma de curiosos achando que atravessar avenidas movimentadas, como fizemos ainda a pouco, apesar de sermos cegos, seja um esporte radical.
Misteriosamente um repórter de microfone na mão e uma câmera surgem do nada.
Repórter: — Senhores, podem dar uma declaração sobre essa incrível demonstração de coragem?
Toninho: — Coragem?
Repórter: — Sim, meus prezados! Vocês ali atrás enfrentaram o que chamamos de caos urbano e o fizeram sem medo, e agora o público aqui presente quer saber: é um movimento oficial?

Zeca: — Perfeito. Um movimento oficial…
Toninho: — Zeca, não faz isso.
Zeca: — É claro que é oficial!

Repórter: — Qual o nome desse movimento?
Zeca: —“Travessia Sem Medo – “A Revolução Urbana”! 
Toninho: — Meu Deus!
A multidão na praça, vibra. Pessoas pegam o celular para filmar.
Repórter: — E qual é o objetivo da “Travessia Sem Medo?”. 
Zeca: — Mostrar que São Paulo pertence aos pedestres destemidos!

Toninho: — Isso vai dar processo...
Zeca: — Ou um documentário fabuloso.
O policial que os ajudou apareceu de novo e suspirou fundo.
Policial: — Se isso virar moda, eu saio do meu emprego. 
Toninho: — Faz sentido.
O cachorro continua seguindo os dois cegos.

Do nada, graças aos dois cegos, tivemos um movimento urbano revolucionário sem qualquer necessidade, tipo uma plateia espontânea e um repórter sedento por manchetes! Em meio a toda essa balburdia, uma “influencer” famosa a Lilica Bunda de Tanajura decidiu aderir à tal da “Travessia Sem Medo” e aproveitando a deixa, fez um vídeo viral. 

De repente, todo mundo começou a atravessar as avenidas sem hesitação, sem olhar, tanto de um lado, como de outro, enquanto os motoristas entravam em colapso nervoso, tentando entender o que acontecia. Os dois cegos sem alguém explicar os verdadeiros motivos, acabaram presos e levados para uma delegacia nas imediações. 

Ao serem liberados, horas depois, ao fazerem o caminho contrário, de volta para casa, foram ambos barbaramente atropelados e mortos por uma ambulância a toda velocidade que os pegou em cheio, justamente em frente ao restaurante onde horas atrás, os dois amigos pretendiam almoçar. Quanto ao cachorro o guarda levou para sua casa e o deu de presente à filha de cinco anos.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Viracopos, Campinas, São Paulo, 20-5-2025

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