Aparecido Raimundo de Souza
Alguns deles ainda mantêm vestígios de seus antigos donos: cordas esgarçadas, redes rasgadas, garrafas e latas de refrigerantes e cerveja vazias, regalos que um dia foram abundantes de esperança. Outros apenas esperam, imóveis, quietos, pesarosos, como se soubessem que jamais retornarão ao mar. Na verdade, estão presos entre as lembranças do oceano distanciado por passos curtos e a inevitável erosão do tempo, indiferentemente condenados a serem ruínas silenciosas de um ontem que ninguém mais se importa. O vento vem e vai, vai e vem assobiando histórias que se perderam nas espumas. Se alguns passantes por acaso se aproximassem e escutassem com atenção, poderiam jurar ouvir murmúrios, como uma espécie estranha de derradeiros suspiros e iguais refrulhos de despedidas insanas.
Nessa altura do campeonato, poucos param para olhar. E os barcos pacíficos, cada um deles em seus degredos de esquecimento, simplesmente aceitam o destino e esperam pelo derradeiro plangor final. Para piorar mais a situação, não há registros de quem os trouxeram, nem de quem os deixou à mercê da sorte. Moradores próximos, dizem que, nas noites em que a névoa desce forte demais, é possível ver sombras se movendo sobre esses barcos. Outros juram ouvir passos nas madeiras apodrecidas, tipo rangeres inexplicáveis que não podem ser apenas obras de um vento que vem de um insulado extremo. Coisa de uma semana, um curioso se aproximou de um desses barcos, impulsionado por uma curiosidade que não soube conter. A princípio, tudo parecia comum —, restos de redes, cordas emboladas, ferragens retorcidas pelas oxidações implacáveis.
Segundo ele, fato relatado a um pescador da vila, ao tocar no casco de um desmilinguido, sentiu um arrepio adventício percorrer a sua pele. O barco estava frio demais, gélido como se nunca tivesse conhecido o calor do sol. Assustado, saiu apressado, murmurando para si mesmo palavras ininteligíveis e nunca mais voltou. Os barcos continuam ali, quietos, as fisionomias tristes e impassíveis, esperando um desfecho que parece não ter pressa de chegar. Seguem olvidados repousando dias e noites, como se estivessem esperando — mas esperando pelo quê? O mar funesto, caminha inexorável lambendo seus cascos num silêncio sem pressa, num devagar negligente, como se soubesse que eles jamais partirão.
Contíguos próximos, relatam que vez em quando moradores de ruas tentam removê-los para uso. Contudo, nessas horas, essas almas subjugadas ao deus dará, parecem sentir uma resistência indescritível, como se não fossem apenas feitos de madeira e ferrugem, mas de algo mais pesado e profundo. E há também os que garantem ter visto sombras alienígenas dentro deles — não de formas humanas, algo que se ergue e se dissolve antes que se possa entender. Numa dessas noites, um jovem decidiu provar que essas supostas “aparições” não iam além de inventos. Destemido, se meteu a fazer bonito para seus amigos, observando que tudo não passava de conversas para bois dormirem. Nada acolá de barcos comuns, oriundos de embarcações esquecidas pelo tempo.
Tardão da noite, se apossou de uma lanterna, atravessou a névoa, e pisou no casco do que ele entendeu ser o mais longevo de todos. O silêncio se fechou ao seu redor. Inclusive os produzidos pelos barulhos ruidosos das ondas que rebentavam de encontro às areias da praia imensa A luz da sua lanterna de repente vacilou. Titubeou como se a própria escuridão quisesse devorá-la. Foi nessa hora, que ele viu. Não um corpo, tampouco um animal. Algo que não deveria estar ali. Uma espécie de figura aborígine, a bem da verdade, uma moça de aparência jovem, na esteira dos vinte. Ela olhou para ele, não com feições humanas, com uma presença que pesou sobre a sua pele, como se o próprio barco, de repente, retornasse à vida e respirasse. Sem esperar nem mais um segundo, recuou.
Na verdade, debandou numa carreira tresloucada, sem olhar para trás. A lanterna que carregava, foi encontrada dias depois flutuando na margem, a luz apagada num “para sempre” imperscrutável e algaraviado. Quando a essa criatura, nunca mais foi vista pelas imediações. Os barcos continuam lá, enfileirados. Seguem imóveis, quietos, taciturnos, como se fossem parte da própria areia do mar imensurável. Nenhum deles tem nome visível —, se um dia galgaram registro, o tempo os apagou, como se quisesse condená-los ao anonimato eterno. Há quem diga (se verdade ou mentira), dentro de um, havia um diário escondido sob uma tábua solta. As páginas, frágeis e amareladas, estavam parcialmente apagadas, mas alguns trechos ainda podiam ser lidos: "A água os chama. Não podem partir, não podem ficar. Algo os prende aqui, como prisioneiros de um pacto antigo. O vento sussurra nomes que não conheço. Ontem, ouvi passos incertos sobre a madeira, mas quando olhei... nada vi."
Esse diário desapareceu antes que alguém pudesse lê-lo por completo. Alguns apregoam que foi levado pelo próprio mar em uma dessas noites intermináveis. Outros insistem que alguém o achou e o escondeu. Mas quem? E para quê? Seria algum parente de Hemingway? Na antiga vila dos pescadores, próxima de onde os barcos estão, os de cabelos brancos evitam falar desses esqueletos destroçados. Aliás, procuram passar ao largo. Desviam a rota, divorciam a curiosidade quando saem para pescar. Por conta, remam espacejados da margem, como se soubessem de algo que não deve ser trazido à tona. E há noites — poucas, mas inquietantes, em que uma névoa vinda lá do mais distante, cai pesarosa e se torna tão densa e espessa que parece tomar forma se movendo entre os cascos atassalhados, como se estivesse à procura de algo... ou sabe-se lá, de alguém. Em paralelo, o tempo passa... dias e noites vem e vão e tudo segue inexoravelmente igual.
Título e Texto. Aparecido Raimundo de Souza, de Ribeirão das Neves, Minas Gerais, 16-5-2025
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