Aparecido Raimundo de Souza
NA ÚLTIMA CASA da Rua dos Enforcados, número 66, bairro da Caixa D´água, morava a jovem cabelereira Patrícia com seu marido Samuel e a filha Mônica, de doze anos. Patrícia se fizera conhecida na comunidade, por sua habilidade ímpar de transformar cabelos estragados, malcuidados, e de feições desastrosas em verdadeiras obras de arte. Por detrás dos sorrisos e elogios, Patrícia tinha umas ideias meio amalucadas. No fundo da sua alma, guardava uma indignação profunda. Ou melhor, uma fraqueza imperdoável. A beldade creditava que o mundo estava cheio de culpados: culpados por cabelos maltratados, culpados por cortes horríveis e culpados pela fabricação de cremes, tinturas e esmaltes que mais pareciam experimentos de laboratórios.
Do nada, decidiu que precisava agir. E rápido. Armada com um punhado de tubos de batons vermelhos vibrantes, esperou a noite chegar. Aguardou o marido sair para o trabalho e a filha dormir. Decidida, improvisou uma máscara tipo a do Jason Voorhees, (aquele personagem do Sexta-feira 13), ajeitou-a no rosto e saiu para a rua. Pelo adiantado das horas, realmente ninguém a perturbaria. Começou a sua fúria incontida, na porta do salão da Alice, a sua maior concorrente. Depois de se certificar que não havia ninguém vigiando, escreveu: "CULPADA POR FAZER FRANJAS TORTAS E QUEIMAR OS CABELOS DE SUAS CLIENTES. SE LIGA, SUA BURRA". Seguiu adiante, sorrindo. Na fachada da farmácia de seu Leopoldo, deixou claro o seu agastamento: "VELHO ASQUEROSO. CULPADO POR VENDER SHAMPOOS QUE PROMETEM MILAGRES".
Na sequência resolveu deixar um recadinho na parede principal da prefeitura: "PREFEITO CULPADO POR NÃO CUIDAR DAS RUAS E PERMITIR QUE OS MORADORES EM DIAS DE CHUVA CHAFURDEM NA LAMA, COMO SE FOSSEM PORCOS. VAGABUNDO, VIGARISTA". Dia seguinte, bem cedo, dando uma de sonsa, se dirigiu à padaria de seu Lafaiete para comprar pão e leite. Ficou sabendo pelos frequentadores que o bairro inteiro estava em polvorosa. Todos queriam saber quem seria a justiceira do batom? Patrícia sentiu-se poderosa. Dona do mundo. Em casa, uma semana depois, enquanto providenciava o café do marido e da filha, levou um susto. O batom, até então seu fiel amigo e companheiro, parecia ter criado vida própria. Do nada, pulou da bolsa e desenhou na porta da geladeira, em letras grandes: "CULPADA POR EXAGERAR".
Patrícia se emputeceu com essa ideia esquisita do batom, e gritou com ele, ao tempo em que passava a mão numa bucha com detergente e apagava o que ele havia escrito:
— Seu maluco, quer que eu seja descoberta? Ouça o que vou dizer. Se acha que estou errada em protestar, volta para dentro da minha bolsa de maquiagem. Entendeu bem? Nunca mais me diga o que eu tenho ou não de fazer.
O batom nada respondeu e Patrícia acrescentou:
— Muito bem. Quem cala, consente. Amanhã depois que o Samuel sair para o trabalho e a Monica dormir, sairemos. Vou mostrar a esse bairro inteiro de idiotas que não tenho medo de ninguém. E o melhor de tudo, tenciono me divertir para valer...
O batom vermelho quis argumentar, mas desistiu. Apenas indagou:
— Querida, se ninguém descobrir que a pichadora é você e que a sua figura não tem medo, como se divertirá?
Assim foi. Na segunda noite, Samuel tomou banho, jantou e seguiu para o trabalho. Mônica viu um pouco de tevê e logo caiu no sono. Dia seguinte acordaria cedo para o colégio. Livre dos afazeres, e escudada pelo adiantado das horas, quase duas de uma noite fria e céu encoberto. Passou a mão na sua máscara, ajeitou a no rosto, apanhou a inseparável necesser repletada de batons escarlates, calçou os sapatos e ganhou a rua. A primeira vítima foi a padaria de seu Benjamim, onde todas as manhãs entrava para comprar café, leite e pão.
Na parede recém pintada, a espevitada escreveu: "CULPADO POR DEIXAR UM PADEIRO INCOMPETENTE PREPARAR OS PÃES QUE SÃO VENDIDOS. MELHOR FECHAR AS PORTAS. VAI PERDER A FREGUESIA, MALUCO”. Na sequência, mirou a fachada da academia do Guilherme: "CULPADO POR PROMETER ABDÔMEN DEFINIDO EM TRINTA DIAS. IMPOSTOR". Ao lado, na faixa indicativa da escola de dança da professora Irina e seu marido Baitoré, mandou vê: "CULPADOS POR NÃO ENSINAREM NOVAS COREOGRAFIAS ÀS ALUNAS QUE ESTÃO INGRESSANDO AGORA. BABACAS". Não parou aí. No balcão da loja de eletroeletrônicos: "CULPADOS POR COMERCIALIZAREM TELEVISORES DE EXPOSIÇÃO AOS COMPRADORES, MAQUINAS DE LAVAR ROUPAS USADAS EMPURRANDO NESSES POBRES OTÁRIOS, A DROGA DA GARANTIA ESTENDIDA. CAMBADA DE VIGARISTAS".
No salão enorme que dava acesso ao único cinema, onde dona Rute, cadeirante, ganhava um extra para se manter com seu carrinho de balas e doces, Patrícia escreveu por cima da cartolina dos valores de cada guloseima: "CULPADA POR VENDER PIPOCAS EM SACOS DE PAPEIS SUJOS, ALÉM DE CARAS, MAL, FEITAS E SEM MANTEIGA E SAL". Nem o espaço do parquinho da praça da matriz, onde havia uma estátua de Santo Antônio, escapou: "CULPADOS PELOS BALANÇOS, GANGORRAS, ESCORREGADORES E APARELHOS PARA OS VELHINHOS FAZEREM GINÁSTICAS. TODOS QUEBRADOS. ACORDA PREFEITO LADRÃO". No Fórum local, não deixou por menos. Grafou: “JUIZ VEADO, CORNUDO E BROCHA. SUA MULHER O TRAI COM O WANDERLEY, O LINDO GATO E GOSTOSO PROMOTOR DE JUSTIÇA”.
É bom que se diga, nem o Cemitério Municipal ficou de fora: “TEM DEFUNTO SAINDO A NOITE PARA NAMORAR. TEM COVEIRO ROUBANDO SEPULTURAS. ADMINISTRAÇÃO DE MERDA”. No hospital infantil Patrícia foi desumanamente sarcástica e feroz: “MÉDICOS DE MEIA TIGELA. VOCÊS ESTÃO MATANDO AS CRIANÇAS. MÊS QUE PASSOU, MORRERAM TRÊS INOCENTES. VOCÊS DEIXARIAM SEUS FILHOS IREM VER DEUS MAIS CEDO? INCOMPETENTES”. No PA, nas UPAS e, claro, nas ambulâncias: "CULPADOS POR DEMORAREM NO ATENDIMENTO. ASSASSINOS". Na ala dos médicos cardiologistas, comandado pelo brilhante especialista doutor Batista Simão: "CULPADO POR APLICAR PROCEDIMENTOS E ENTUBAR CRIATURAS QUE RARAS VEZES VOLTAM PARA SUAS VIDAS NORMAIS".
Patrícia estava disposta a seguir com as suas barbáries. Não deixaria pedra sobre pedra e mandaria seus recados sem se importar a quem pudesse atingir. Vamos imaginar o que a cabeleireira justiceira, com seus batons indomáveis, aprontaria nesses cenários: no salão do barbeiro José Messias: "CULPADO POR REVISTAS VENCIDAS DE UM ANO ATRÁS". Na cantina da faculdade de direito: "CULPADOS POR COBRAREM UM RIM POR UM LANCHE RUIM". No consultório dermatológico: "CULPADOS POR NÃO RESOLVEREM AS QUESTÕES DAS PESSOAS COM CASPAS, CEBORRÉIAS E CABELOS OLEOSOS". Cada novo lugar que Patrícia visitava, parecia revelar mais "culpados" para a sua lista infindável.
E o batom, é claro, continuava a crescer em rebeldia, ameaçando fazer dela a próxima "vítima” atrelada às suas próprias críticas infames e afiadas. Será que Patrícia perceberia, algum dia, que até mesmo a perfeição tinha suas falhas? Ou ela seguiria pichando até o mundo todo estar coberto por seus batons acusadores? Deu um bafafá dos diabos, quando ela pichou a nave da padroeira do bairro, a santificada Nossa Senhora Aparecida: O alvo, indiretamente se referia ao padre Edmundo Quevedo: “PARE, EM NOME DO ALTÍSSIMO, DESSA PEDIÇÃO DE DINHEIRO EM TROCA DE UMA SALVAÇÃO QUE VOCÊ NUNCA PODERÁ DAR”.
No mesmo trilho, na casa paroquial, onde o sujeito morava contíguo ao santuário, a engraçadinha não fez feio: "CULPADO POR PALAVRAS MARAVILHOSAS, VINDAS DO SEU CORAÇÃO VAZIO E MISERÁVEL. CULPADO PELO SEU DEUS ACEITAR SOMENTE PIX. SEU CANALHA. SAIBA VELHO TARADO, EU SEI DE TUDO. PEDÓFILO ASQUEROSO. DESCOBRI QUE TODO O DINHEIRO ARRECADADO DOS FIÉIS NAS MISSAS DOMINICAIS, VOCÊ GASTA COM OS FILHOS DE DONA ALBERTINA, IMPONDO À ELES QUE SE DEITEM COM VOCÊ EM TROCA DE BOBICES IMPERDOÁVEIS E COMPRA DE COMIDA PARA A MÃE DELES, QUE É POBRE E CEGA”.
Patrícia, claro, não deixava passar batido as promessas vazias e as intenções questionáveis, e o batom, por seu turno, não se olvidava de alertar a tresloucada. Enquanto ele pichava as coisas delas com uma frase de efeito, “CULPADA POR GENERALIZAR, a toda hora, tentando desviar a despudorada de suas ideias inconcebíveis, Patrícia seguia às carreiras, deixando a sua marca em letras garrafais onde lhe desse na veneta. Nessa nota fora de tom, noite após noite, Patrícia seguiu vilipendiando e logicamente provocando reflexões profundas e, claro, sendo acometida de boas risadas caminho a fora por conta de suas idiotices, sem falar nos moradores e principalmente nos comerciantes que tinham as suas portas devassadas por frases de tirar o fôlego.
Todos, sem exceção, queriam saber quem seria o autor ou a autora das frases imundas para lhe aplicar uma surra memorável e, em seguida, deixar o “o” ou a “a” amaldiçoada que apodrecesse na cadeia. Patrícia, a bem da verdade, não estava nem aí. Tinha a mente de dimensões tacanhas. Movida pela revolta e assanhada pelo seu entendimento doentio, achava que as suas barbáries necessitavam de um leve toque de humor. De repente, do nada, Patrícia se viu acometida de uma forte dor no peito. Tão pesada e densa, que não resistindo, (embora socorrida às carreiras por vizinhos), veio a óbito. Morte súbita. Foi parar no céu. Apesar desse incidente não programado, e sem perder o seu estojo até a boca com seus famosos batons, ao chegar na amplidão do Universo, enfrentou uma fila quilométrica.
Maior que a dos aposentados em bancos para receberem as suas mirradas aposentadorias que foram surrupiadas pelos ladrões do INSS. Quando se viu frenteada ao ingresso do Paraíso, não deixou por menos: "SÃO PEDRO, CULPADO POR FILAS DE ACESSO AOS DOMÍNIOS DO DEUS DE TODAS AS COISAS. CULPADO POR PROMESSAS DE NUVENS MACIAS QUE NÃO CHEGARAM ATÉ MIM. CULPADO POR ANJOS TOCANDO HARPAS SEM PARTITURAS E COM NOTAS DESAFINADAS. CULPADO POR FALTAR TOMADAS PARA CARREGAR CELULARES. CULPADO POR NÃO EXISTIR POR AQUI NENHUMA LANCHONETE NO CAPRICHO PARA A GENTE FAZER UM LANCHE”.
A apenas uma alma, uma alma apenas, a sua frente, para a entrevista e dialogar com São Pedro, cara a cara, um anjo com a fuça de Gilmar Mendes arrependido, trajando uma cueca rasgada na bunda, se aproximou dela e lhe entregou um envelope lilás, com um bilhetinho dentro. Apressada, afoita, quase rasgou o papel que trazia uma tirinha minúscula com uma pequena mensagem escrita. Dizia o seguinte: "CULPADA POR NÃO TER LIDO OS TERMOS E AS CONDIÇÕES PARA A SUA ENTRADA DEFINITIVA EM MEUS DOMÍNIOS. EXCELENTE REGRESSO. ASSINADO, SÃO PEDRO”. Imbuída com a sua audácia e senso de humor inconcebíveis, pensou, por momentos ligeiros, em questionar a própria lógica divina enquanto tomava conhecimento do lacônico aviso que lhe fora entregue.
Todavia, algo mais forte, enfático e autoritário que ela, não a deixou seguir com seu intento e torrar a paciência do homem que detinha as mil chaves, decidindo quem ingressaria e quem seria rejeitado às convivências das sofisticadas mansões celestiais. Achava que São Pedro, paciente e sereno, talvez olhasse para ela com um sorriso meigo e dissesse: "BEM VINDA, PATRÍCIA. AQUI ACEITAMOS TODO MUNDO, ATÉ MESMO CABELEREIRAS COM BATONS REVOLUCIONÁRIOS." Não deu outra. Foi despachada de volta à Terra. Acordou, sobressaltada, suando em bicas, nos braços do cardiologista, doutor Batista Simão.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha no Espírito Santo, 6-5-2025
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