Aparecido Raimundo de Souza
VAMOS VOLTAR UM BOCADINHO no tempo. Regressar naqueles idos, hoje
distanciados, em que as histórias infantis começavam com um gostoso “Era uma
vez”. Bons tempos! Hoje, infelizmente, percebo estarrecido e boquiaberto,
pasmo, e aparvalhado, mesmo modo perplexo e estupefatado, que as crianças as
quais conheço, ou convivo no dia a dia, nem sabem o que significa esse “Era uma
vez”. Menos ainda, ouviram falar, ainda
que por ouvir dizer, de Monteiro Lobato, Ziraldo, Thais Linhares, Silvia
Orthof, Maria Lajolo, Ana Maria Machado, Christian Andersen, José Mauro de
Vasconcelos, Maurício de Sousa, e tantos mais.
As nossas crianças, melhor dito, os nossos meninos e meninas de hoje, só
sabem mencionar os filmes dos celulares, neles incluídos programas, desenhos
imbecilizados que só servem para desvirtuar a cabeça desses jovens que nem
idade têm para possuírem um aparelho de última geração. A futuro próximo vamos
ter (aliás, a bem da verdade já existem aos borbotões) um bando enorme de
crianças de mentes fúteis, desvirtuadas, abobalhadas, da nossa realidade.
Crianças que amanhã ou depois servirão apenas para robôs comandados, em face de
uma enxurrada enorme de besteirol disponível em todas as redes sociais, sem
falar nos programas de televisão que viraram um inferno, não o de Dante, mas o
do próprio Capeta e seus apaniguados.
Aos 72 janeiros bem vividos, graças a Deus, continuo adepto do
tradicional “Era uma vez”. Na magia
encantadora dessas três palavrinhas atrativas e mágicas, se me permitem, vou
contar a história de uma galinha jovem, que, apesar de sua perna defeituosa,
tinha uma autoestima que botava no chinelo todas as demais do enorme
galinheiro. Preparados? Então vamos lá. “Era uma vez uma galinha muito
simpática. Seu nome, Jojoca Pintadinha. Por ser alegre e extrovertida, se recusava
terminantemente a ser definida por sua "leve diferença anatômica".
Aliás, dizia com orgulho: "Se até o tango é dançado com uma pernada, por
qual motivo, eu não posso ser feliz e realizada da mesma forma que uma
dançarina dessa gostosa milonga argentina?"”
“Jojoca Pintadinha por conta desse pequeno probleminha, tinha um andar desengonçado. Ao invés de parecer desajeitada e azoinada, se fazia vista como puro carisma. O galo Benedito Gozador, por exemplo, (apesar de sem vergonha e sórdido) se tornara seu maior fã e sempre dizia de boca cheia: “com essa marcha única, a danadinha conquistou o galinheiro inteiro". Mas Jojoca Pintadinha tinha um segredo: ela usava a sua perna anormal como desculpa esfarrapada para fugir dos deveres pesados. Quando carecia ciscar o solo duro atrás de minhocas, lá ia a donaire aos pulos curtos, suspirando e exclamando frases como "Ai, meu cambito mutilado, não aguenta mais um passo.” Saía, em seguida à francesa, pela tangente, anunciando a todas as demais moradoras da avicultura, o incômodo que a atormentava:
— Quem sabe amanhã eu não acorde melhor?"”
“Assim, sempre de igual modo, enquanto as outras trabalhavam, ela se encostava à sombra de um enorme abacateiro para filosofar sobre a vida — ou simplesmente tirar um cochilo. Certo dia, a “perninha doente" quase colocou a sua vida em apuros. Dona Ximbica, uma raposa que vez em quando dava os ares da graça apareceu sem avisar e se achegou dos galinheiros. Todas as inquilinas correram, cada uma para um canto diferente, no mais completo estado de pânico. Jojoca Pintadinha, com a sua confiança inabalável e aquele andar peculiar, fez algo inesperado: começou a coxear de forma dramática na direção da raposa, fingindo ser uma presa fácil. O truque deu certo: a raposa, confusa e desconfiada, achou melhor não arriscar. Deu meia volta e foi embora.”
“Desde então, Jojoca Pintadinha virou uma espécie de lenda viva, não só no galinheiro dela, como nos demais em derredor. Não por sua coragem, mas também porque provou que, mesmo com uma perna mutilada, seria capaz de ensaiar uma pernada (entre aspas) e desfecha-la no calcanhar do destino e sair sacudindo a poeira dando a volta por cima. Com essa proeza inimaginável, o galo Benedito Gozador pirou de vez o cabeção e se fez completamente encantado pela Jojoca Pintadinha. Ele achava o andar “sobe desce” dela, como uma demonstração de charme único e coragem inigualável. Benedito Gozador dizia que aquela se constituíra numa espetaculosa galinha "fora do padrão", no melhor dos sentidos. Até inventou um apelido carinhoso para ela: “A Princesa Deteriorada do Galinheiro". O cognome pegou. “”
“Como todo bom romântico, Benedito Gozador não fugia à regra. Tinha fama de atrapalhado. Vivia tentando impressionar a Jojoca Pintadinha cantando músicas de Amando Batista, mas, como se fazia ruim de gogó, sua voz desafinava feio além de, em contrapartida, afervorar excitando um bando de outros galos para pequenos duelos — não com espadas, claro, mas com quem expurgava o solo mais rápido. Jojoca Pintadinha, é evidente, notava as investidas, contudo, adorava de paixão fazê-lo suar e tremer na base. Sempre que Benedito Gozador chegava perto, ela soltava um comentário espirituoso, como: "Ora, Benê, será que meu charme galináceo não é muita areia para o seu bico meio que miúdo?"”
“Em seguida, dava uma de suas famosas mancadas dramáticas, deixando Benedito boquiaberto e ainda mais apaixonado e cativo. No fundo, a Jojoca Pintadinha até se divertia com as tentativas do pobre galo, mas sabia que ele, antes de qualquer coisa mais séria, precisaria provar por “a”, mais “b”, que se fazia tão brabo, confiante e invencível, quanto ela, antes de assenhorear o seu coração — ou, nesse caso, a sua perna manquejada. Belo dia, depois de ter tirado uma boa soneca, resolveu partir para a luta. Procurou o galo e propôs à criatura, uma maneira dele testificar para ela que se fazia macho, confiante, e gostava do seu corpinho de formas pecaminosas de verdade. Sempre cheia de ideias brilhantes e um toque de determinação, decidiu que o Benedito precisaria passar por um "Desafio do tipo Mancol"”.
“Ela queria garantir que o simpático garanhão estivesse realmente à altura do seu charme e autoconfiança. Depois de muito matutar, foi até onde o galo estava com outros companheiros, o chamou num canto e alvitrou o seguinte atiçamento. Benedito teria que passar um dia inteiro andando como ela —, mancando. Não somente isso. Havia mais: carecia, no mesmo pacote, se virar nos trinta trabalhos enfrentando os afazeres do galinheiro sem reclamar, além de aprender um novo repertório de um outro artista que cantasse algo igual ou melhor que Amado Batista e escolhesse, pelo menos uma música que fosse tão envolvente e que se entrosasse juntamente a sua marcha de mancadas descompassadas.””
“Segundo ela, esse seria o teste definitivo para ver se Benedito não estava apenas apaixonado pela aparência, mas também pelo espírito indomável da apetitosa de porte altivo, e, acima de qualquer suspeita. Benedito, claro, aceitou o desafio com entusiasmo (e talvez um pouco de medo). Dias depois, passou a mancar por toda a extensão do galinheiro de forma tão exagerada que as outras galinhas não conseguiam segurar o riso. Quando chegou a hora da música escolhida, ele soltou a voz numa canção romântica de Shania Twain (From This Moment on), atonando uma voz maviosa, entrelaçada a um canto tão criativo e ao mesmo tempo tão desconjuntado, que até os pintinhos e as demais galinhas (e pasmem!), até os outros galos inquilinos próximos começaram a dançar””.
“Jojoca Pintadinha, observava tudo e, ao final da apresentação não resistiu: soltou uma de suas risadas cômicas e declarou Benedito Gozador, o vencedor do obstáculo imposto. Lado igual, admitiu que, com aquele esforço, o sujeito não só provou a sua confiança, mas também o seu afeto genuíno por ela. Desde então, os dois viraram o casal mais incomum e divertido do galinheiro, sempre prontos para arrancar boas gargalhadas com suas mancadas sincronizadas e duetos únicos em sintonia meridiana com melodias românticas do repertório de Shania Twain. Duas semanas depois, em meio a uma grande festa Jojoca Pintadinha e Benedito Gozador se casaram e foram felizes para sempre.””
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 25-4-2025
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