Como o movimento Woke e o Complexo Industrial da Censura se uniram para institucionalizar a censura sob o pretexto de proteger a democracia
David Agape
Durante décadas, a liberdade
de expressão parecia consolidada no mundo ocidental. Após a queda do Muro de
Berlim, a ideia de que o debate livre era essencial para a democracia ganhou
força como nunca antes. Ainda que ditaduras persistissem em partes da Ásia,
África e América Latina, o Ocidente viveu um período de estabilidade e expansão
sem precedentes.
A liberdade de imprensa, a
liberdade acadêmica e o direito ao dissenso tornaram-se pilares das democracias
liberais. Essa tolerância não era sustentada apenas por leis ou constituições,
mas também por um consenso cultural: a convicção de que proteger o discurso —
especialmente o discurso incômodo — era vital para manter sociedades livres.
Abrir espaço para ideias erradas era visto como o preço inevitável do
progresso, da inovação e da crítica necessária às instituições.
O advogado dinamarquês Jacob
Mchangama, em Free Speech: A History from Socrates to Social Media (528 p., Basic Books, 2022), chama
esse período de “era de ouro” — o momento mais livre da história para a
circulação de ideias. Mas essa liberdade começou a ruir quando novas
tecnologias desafiaram o controle das elites.
A internet, nos anos 1990,
prometia uma utopia de comunicação: qualquer pessoa poderia publicar, debater e
desafiar os monopólios midiáticos. As redes sociais, surgidas no início dos
anos 2000, intensificaram essa revolução: democratizaram o acesso à informação,
aceleraram movimentos sociais e pareciam, a princípio, prometer a
democratização plena do debate público. Plataformas como Twitter e Facebook
deram voz a marginalizados, mas também a dissidentes que questionavam
narrativas dominantes.
As elites entraram em pânico.
Perceberam que, além de perderem o monopólio da informação — o que muitos
chamam de “monopólio da mentira” —, também não conseguiriam moldar as redes sociais a seu
bel-prazer. As redes eram orgânicas, seguiam uma lógica própria e impulsionavam
campanhas espontâneas, mobilizações imprevisíveis e ondas de opinião que
escapavam ao controle dos antigos mediadores.
A Primavera Árabe (2010-2012)
foi o primeiro alerta. O Brexit e, principalmente, a eleição de Donald Trump,
em 2016, consolidaram o medo. Ficou claro que a comunicação descentralizada
podia desestabilizar estruturas inteiras, permitindo a ascensão de movimentos
populistas e a rejeição de projetos políticos e culturais antes considerados
inquestionáveis.
Mais rápidas, diretas e sem filtros tradicionais, as redes sociais ameaçavam a capacidade das elites de mediar e moldar o debate público. O que no início foi celebrado como expansão democrática logo passou a ser tratado como ameaça existencial.
Nesse contexto nasceu o
Consenso da Censura: a convicção de que a liberdade de expressão deve ser
limitada para proteger instituições e conter o “caos” das redes. A liberdade,
antes um direito inalienável, tornou-se um privilégio condicionado ao “uso responsável”.
Discursos rotulados como tóxicos — fake news, discurso de ódio, desinformação —
passaram a ser alvos de repressão, sempre em nome de um bem maior: a “ordem
democrática” ou a “proteção de minorias”.
Esse processo floresceu nos
centros do poder liberal — universidades, ONGs internacionais, organismos
multilaterais, grandes plataformas de tecnologia e mídia tradicional. No
Brasil, ganhou contornos ainda mais peculiares: a censura passou a ser comandada
diretamente pelo Judiciário, transformado num ator político central.
Uma das justificativas mais
repetidas para embasar essa nova censura foi o chamado "paradoxo da
intolerância", proposto por Karl Popper em A Sociedade Aberta e
seus Inimigos (1945). Popper escreveu (Volume 1, Capítulo 7, Nota 4)
que a tolerância ilimitada pode permitir a ascensão de intolerantes, destruindo
a própria tolerância. Ativistas woke, porém, distorceram essa ideia, usando-a
para justificar a supressão de discursos considerados “prejudiciais”.
Mas, como explicam Eli Vieira e Gustavo Maultasch, essa interpretação é uma distorção grosseira do pensamento de
Karl Popper. Além de ser apenas uma nota de rodapé, não uma tese central do
livro, Popper enfatiza que o combate aos discursos intolerantes deve ser feito
pela argumentação, pela exposição pública e pela força do debate aberto — não
por meios autoritários ou censura prévia.
A redefinição da liberdade
de expressão
"Liberdade de
expressão não é liberdade de agressão! Não é liberdade para destruir a
democracia, as instituições ou a dignidade alheia!"
Com essa frase, em letras
garrafais e repetida como um mantra, o ministro do STF Alexandre de Moraes
passou a embasar uma série de decisões que resultaram em censura no Brasil.
Desde 2022, o bordão aparece em sentenças, entrevistas, pareceres e votos judiciais,
consolidando-se como um slogan pessoal do ministro. Por meio dele, Moraes busca
provar para o público — e para si mesmo — que o que faz não é censura. Mais do
que isso: busca redefinir a liberdade de expressão como um direito
condicionado, subordinado à sua interpretação de democracia, verdade e
civilidade.
Mas nem sempre foi assim. Em
seu discurso de posse no STF, em 2017, Moraes defendeu com veemência a
liberdade de expressão como um valor inegociável. Em 2018, ao julgar a ADPF 548
— que tratava da censura a manifestações políticas em universidades durante o
período eleitoral — o ministro foi categórico: “A Constituição protege a
liberdade de expressão no seu duplo aspecto: o positivo, ou seja, o cidadão
poder se manifestar como bem entender, e o negativo, que proíbe a ilegítima
intervenção do Estado”. Foi além, afirmando que “não há permissivo
constitucional para restringir a liberdade de expressão no seu sentido
negativo” e que qualquer limitação preventiva ao debate público, principalmente
em ambiente universitário, era inaceitável.
Cinco anos depois, o mesmo
ministro suspendeu redes sociais inteiras, mandou prender influenciadores por
falas e rotulou conteúdos de “gravemente descontextualizados” como ameaças à
democracia. O contraste com sua atuação recente é notável. Essa transformação
demonstra como se deu a formação do Consenso da Censura: não de uma ruptura
abrupta, mas de uma mudança gradual, ancorada em justificativas morais e
jurídicas
Nesse processo, Moraes passou
a recorrer a referências clássicas do pensamento liberal para legitimar
decisões restritivas. Em uma das mais controversas, ao censurar a plataforma
Rumble, citou o filósofo John Stuart Mill como suposto apoio à remoção de conteúdos
classificados como desinformação. “Confunde-se liberdade de expressão com
liberdade de agressão”, escreveu, afirmando que Mill defendia limites a
discursos causadores de “danos injustos”.
A citação gerou espanto entre
especialistas em liberdade de expressão, como o pesquisador Jacob Mchangama e o
jurista Jeff Kosseff. Em artigo publicado no The Bedrock Principle, eles argumentaram que
Moraes distorce completamente as ideias de Mill. Para eles, o pensador inglês
estaria “se revirando no túmulo”. O trecho citado pelo ministro tratava de
liberdade de associação, não de expressão. Na verdade, Mill defendia o oposto:
“silenciar uma opinião é roubar a humanidade”, escreveu o filósofo, enfatizando
que até ideias erradas merecem ser debatidas para que a verdade prevaleça.
De forma semelhante, Moraes
evocou, fora de contexto, a jurisprudência americana sobre liberdade de
expressão. Recorrendo à célebre — e frequentemente mal interpretada — frase do
renomado jurista da Suprema Corte Americana Oliver Wendell Holmes sobre “gritar
fogo falsamente num teatro lotado”, o ministro omitiu que o próprio Holmes mais
tarde revisou sua posição, dando origem à doutrina moderna do “mercado de
ideias”, que restringe severamente qualquer possibilidade de censura prévia.
Os pais do Consenso da
Censura
O Consenso da Censura não tem
um manifesto fundador, mas dois “pais” claros: o movimento Woke e
o Complexo Industrial da Censura (CIC).
O movimento Woke surgiu no
ambiente acadêmico, enraizado nas ideias da Nova Esquerda e das Teorias
Críticas da Escola de Frankfurt, que nas décadas de 1960 e 1970 reformularam o
marxismo sob uma ótica cultural. Essas correntes teóricas defendiam que a transformação
da sociedade exigia não só mudanças econômicas, mas também o combate a formas
simbólicas de opressão. Essa base intelectual ganhou nova força nos anos 2000,
especialmente com o feminismo da terceira onda e o ativismo antirracista.
A partir daí, militantes
passaram a sustentar que discursos considerados sexistas, racistas ou
opressivos não eram apenas opiniões, mas mecanismos de perpetuação da violência
simbólica. Por isso, defendiam que essas manifestações deveriam ser moderadas, suprimidas
ou eliminadas do espaço público. Esse argumento se apoiava numa leitura
distorcida do chamado “paradoxo da intolerância”, sugerindo que tolerar
discursos ofensivos seria equivalente a ser cúmplice da opressão.
Inicialmente limitado ao
debate acadêmico, o movimento ganhou projeção pública após a eleição de Barack
Obama e, sobretudo, com a ascensão das redes sociais. Ativistas — apelidados
de Social Justice Warriors (SJWs) — pressionaram plataformas
como YouTube, Facebook e Twitter a remover conteúdos rotulados como misóginos,
homofóbicos ou discriminatórios. O que começou como uma militância
universitária se transformou em um novo consenso cultural, amplamente adotado
por empresas, estúdios e celebridades — muitas vezes por convicção, mas também
como estratégia de marketing e proteção de imagem.
A expansão do movimento foi
impulsionada por grandes financiadores, como o bilionário George Soros, por meio da Open Society Foundations, que direcionaram milhões para
causas de “justiça social”. Assim, o Woke deixou de ser um fenômeno marginal e
passou a integrar a cultura institucional do Ocidente, ocupando espaço em
universidades, ONGs, mídia, governos e corporações.
No Brasil, embora o
termo woke não tenha tradução direta, a palavra “lacração”
passou a representar fenômeno semelhante. A gíria surgiu nos anos 2000 no
vocabulário de gays e travestis, com o sentido metafórico de “lacrar o ânus das
inimigas” — ou seja, calar, humilhar e silenciar adversários. Desde a origem, a
ideia de “lacrar” trazia a noção de impor superioridade, não de convencer pelo
argumento. Com o tempo, entrou no vocabulário mainstream e,
depois, tornou-se também um termo pejorativo.
O biólogo e jornalista Eli
Vieira (Mais Iguais que os Outros, Avis Rara, 2025) prefere usar o
termo "identitarismo" para descrever o fenômeno de maneira mais
precisa e neutra, já que tanto "woke" quanto
"lacração" se tornaram carregados de conotações negativas — inclusive
entre muitos dos próprios simpatizantes do movimento.
Enquanto o movimento Woke fornecia
a narrativa moral, o Complexo Industrial da Censura entregava o aparato
prático. Após os ataques de 11 de setembro de 2001, agências de inteligência
americanas, como a CIA e o FBI, ganharam poderes extraordinários para monitorar
comunicações sob o pretexto de combater o terrorismo. A vigilância digital se
expandiu ainda mais com a escalada dos conflitos entre Rússia e Ucrânia e a crescente percepção de que a
guerra moderna não se travava apenas nos campos de batalha, mas também no
controle da informação.
As agências de inteligência
passaram a enxergar a internet — e, especialmente, as redes sociais — como um
novo teatro de guerra. Não era mais sobre espionar governos estrangeiros ou
interceptar mensagens de grupos terroristas. Agora, a principal preocupação era
a circulação de narrativas internas, capazes de desestabilizar eleições, gerar
movimentos de massa ou enfraquecer a confiança nas instituições. O inimigo já
não era apenas externo. A desinformação e os supostos discursos radicais
internos passaram a ser tratados como ameaças à segurança nacional.
O Complexo
Industrial da Censura (CIC) se estruturou como uma rede entrelaçada de
agências governamentais, Big Techs, ONGs, think tanks, universidades e grandes
veículos de mídia. Todos conectados por uma mesma lógica: a informação precisa
ser controlada para preservar a "ordem democrática" — ainda que, para
isso, seja necessário suprimir liberdades individuais.
O Consenso da Censura nasce
desse casamento: de um lado, o medo das palavras que machucam; do outro, o medo
das ideias que ameaçam o poder. A consequência foi o surgimento de uma nova
censura — mais sutil que as antigas. Ela se apresenta como responsabilidade
social, é terceirizada a empresas privadas, apoiada pela imprensa e por ONGs,
sustentada por acadêmicos e vendida à sociedade como se fosse uma proteção
contra o caos. Mas o objetivo, como sempre, continua o mesmo: controlar quem
fala, o que se fala — e quem pode ser ouvido.
Pânico Moral
O que se vê hoje é a repetição
de um padrão antigo. Sempre que novas ideias ou novas tecnologias surgem— da
prensa de Gutenberg ao rádio — , o medo das elites gera uma contraofensiva. O
sociólogo Stanley Cohen, em Folk Devils and Moral Panics (1972), mostrou como o
pânico moral transforma ideias ou grupos em ameaças existenciais, legitimando
controle. Hoje, fake news e discurso de ódio são os “demônios” que justificam a
censura, apresentados como riscos à democracia.
Esses alvos simbólicos servem
para canalizar a ansiedade coletiva e legitimar medidas de contenção. Assim, o
medo não é um efeito colateral, ele é cuidadosamente cultivado para mobilizar a
sociedade. Políticos, veículos de imprensa e ativistas constroem narrativas
alarmistas que apresentam determinadas ideias ou movimentos como riscos
intoleráveis. A censura, então, deixa de ser vista como uma violação
excepcional e passa a ser desejada por parte da população, convencida de que a
liberdade representa um perigo.
A chamada "era de
ouro" da liberdade de expressão, como define Jacob Mchangama, talvez tenha
sido apenas mais um intervalo entre ciclos de abertura e repressão que marcam a
história humana desde as primeiras civilizações. Mchangama também propôs o
conceito de entropia da liberdade de expressão para descrever
esse fenômeno: toda conquista em favor do discurso livre tende, com o tempo, a
se deteriorar. A liberdade, em vez de se expandir continuamente, perde
sustentação e regride.
Fomentando a liberdade
Por um tempo, o Consenso da
Censura pareceu invencível. Era como se essa ideia tivesse se enraizado de
forma irreversível no Ocidente. Quem discordava era silenciado, rotulado ou
simplesmente apagado do debate. Mas o Consenso começou a ruir em 2022, quando
Elon Musk comprou o Twitter e revelou os Twitter Files. Os documentos expuseram
colaborações entre big tech, governos e ONGs para moderar conteúdos,
confirmando o CIC.
A revelação rompeu a blindagem
do sistema e deixou claro que o discurso sobre "proteger a
democracia" havia se transformado em um projeto de controle em larga
escala. A eleição de Donald Trump em 2024, contra toda a pressão institucional, foi mais
um reflexo dessa quebra.
No entanto, a luta está longe
do fim. As forças que sustentam a censura seguem ativas, adaptando métodos e
buscando novas formas de controle. A história mostra que a liberdade de
expressão nunca é uma conquista definitiva. É frágil — e exige vigilância constante.
Ainda que hoje a esquerda esteja se beneficiando do fato de a direita ser o
principal alvo da censura moderna (falaremos mais sobre isso posteriormente),
nada garante que o sistema não se voltará contra ela no futuro. A história
mostra que instrumentos de repressão, uma vez consolidados, tendem a sobreviver
aos seus criadores — e a mudar de mãos conforme o vento político.
Tenho certeza de que muitos
ativistas pró-censura me acusarão de “defender o direito de contar mentiras ou
espalhar ódio”. Mas essa acusação parte de uma confusão perigosa: a de que
liberdade de expressão significa concordar com tudo o que é dito. Não significa.
Defender a liberdade de expressão é defender o direito das pessoas falarem —
inclusive quando estão erradas. Porque o único modo de descobrir o que é
verdade é permitir que ideias concorram livremente no espaço público.
Hoje, porém, esse princípio
vem sendo substituído por uma lógica perigosa: a de que a verdade pode — e deve
— ser determinada por autoridades centrais, não apenas governamentais, mas
também de organizações privadas. Por exemplo, as agências de checagem de fatos,
embora realizem uma atividade jornalística legítima, se tornaram instrumentos
de censura. Através de seus acordos com governos e redes sociais, essas
agências adquiriram um poder quase policial, permitindo-lhes retirar ou
suprimir conteúdos que consideram falsos. No entanto, esse poder é suscetível a
abusos, e conteúdos verdadeiros ou em disputa também são removidos. Além disso,
é notório que a maioria dessas agências de checagem de fatos possuem uma clara
inclinação para a militância de esquerda, influenciando a maneira como os fatos
são interpretados e apresentados.
Isso levanta uma questão
central: quem decide o que é verdadeiro ou falso? Ou, como bem questiona
Gustavo Maultasch: “quem adjudica?”. A subjetividade dessa decisão, aliada à
orientação política dos checadores, pode transformar a checagem de fatos em uma
ferramenta de censura, mesmo quando a intenção é promover a veracidade.
Portanto, defender a liberdade
de expressão não é defender mentiras — é reconhecer que o direito de falar,
ouvir e discordar é a única forma confiável de separar verdade e erro. Quando o
poder de decidir o que pode ou não ser dito é concentrado nas mãos de poucos —
sejam juízes, governos ou plataformas digitais — o risco não é apenas o erro,
mas o abuso.
Mas resistir à censura visível não basta. É preciso fomentar, todos os dias, espaços onde a dúvida, a crítica e o confronto de ideias sejam vistos como pilares da sociedade livre — não como ameaças. Defender a liberdade só para quem concordamos é fácil; o verdadeiro teste é proteger justamente os discursos que nos incomodam. A liberdade não deve ser defendida só nos momentos de crise, ela precisa ser cultivada todos os dias como parte da vida em sociedade. Porque a censura não é apenas uma imposição externa: ela também brota de dentro de nós. E é contra essa nossa natureza, que é intrinsecamente censora, que precisamos lutar todos os dias.
Título, Imagem e Texto: David
Agape, A Investigação,
30-4-2025
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