sexta-feira, 30 de maio de 2025

[Aparecido rasga o verbo] Ruído manifesto em espaço estreito

Aparecido Raimundo de Souza

OS MENINOS ALÉCIO, Pedro, Josemar, Antário, Gurgel, Benedito, e Luiz Carlos, depois do final das aulas, antes de irem para casa paravam na pracinha em frente ao prédio onde estudavam. Todas as tardes, por volta das quatro e meia, assim que acabavam as chatices dos professores e a morosidade das horas emperradas com literatura, matemática, educação física, e outras matérias enfadonhas, tomava forma uma roda de preguiçosos na maior das euforias. Os sete moleques brincavam de adivinhações, valendo para quem obtivesse mais acertos, um lanche acompanhado de um refrigerante a ser escolhido pelo vencedor na padaria da dona Mercês. A brincadeira virara rotina e não havia um dia em que o grupo deixasse passar a contenda em branco. O que lograva êxito no dia anterior, seria o encarregado de formular as perguntas e os outros de responderem imediatamente. Gurgel numa dessas se safara vitorioso.

Gurgel:— Alécio, como pode ver, hoje é você a bola da vez. Posso perguntar?
Alécio, balançou a cabeça afirmativamente:
— Manda brasa, Gurgel.
— Gurgel:— Se não souber a resposta fica quieto. O que tiver certeza dela, poderá se manifestar. Como sempre, ganha quem tiver mais acertos.
— Antário: Não enrola Gurgel, manda logo a pergunta.
Gurgel: — Uma casa tem quatro cantos, cada canto tem um gato, cada gato vê três gatos: quantos gatos são?

Alécio: — Doze.
Gurgel: — Resposta errada. Quem sabe?
Pedro: — Quatro. São quatro gatos. Cada um deles vê três, mas não enxerga a si mesmo.
Gurgel: — É isso, mano véi. Na mosca. A nova pergunta. Cem vacas seguem em fila indiana em direção a um enorme pasto verdejante. De repente, a que encabeça o rebanho, olha para trás e exclama: Ué, só tem noventa e oito! Por quê?

Pedro: — Não eram cem, nem noventa e oito. A primeira ao se virar viu que só existiam duas. Ela contou com ela mesma e acrescentou a que estava logo atrás. As cem, na verdade pura imaginação. A resposta final é clara. Duas. Ela e a outra encostada em seu traseiro. Como você disse que eram sem, não havia vaca nenhuma. A diferença está no “cem com c” e no “sem com s.”

Gurgel: — Resposta errada... quem se habilita?
Josemar: — A resposta certa é: vaca não sabe contar...
Gurgel: — Ponto para o Josemar. Lá vai mais uma. Um homem está em cima de um morro a cavalo. O que ele tem nas mãos?
Pedro se levanta e manda bala: — Os arreios...
Gurgel: — Resposta errada.
Alécio: — Um chicote...
Gurgel: — Resposta errada.

Antário: — Uma vara com ferrão igual aquelas usadas para tocar gado?
Gurgel: — Resposta errada.
Luiz Carlos: — Um enxadão ou uma picareta.
Gurgel: — Explica aí, seu focinho de toupeira.
Luiz Carlos: — Se ele está em cima de um morro a cavalo... ele teria que ter os dois pés nos estribos, a cela para estar sentado de forma correta e nas mãos os arreios para direcionar o animal, tipo esquerda, direita, etc. Como o sujeito está em cima de um morro a cavá-lo, para ser mais explícito, esse cara trabalha cavoucando ou abrindo um buraco... ninguém consegue cavar um morro se não tiver uma enxada ou uma picareta. E logicamente, uma pá, para jogar a terra para um determinado lugar.

Faz pose de sabichão e continua, o peito estufado:
— A cava-lo. A cava-lo quem? O morro. Para ser mais objetivo, abrindo um furo na terra, acertando uma greta, ou algo parecido, como uma vala, desobstruindo uma brecha entupida etc., etc. E não a cavalo, encurtando o papo, montado num cavalo.
Gurgel: — Muito bem. Parabéns, Luiz Carlos. Vamos mais: Dois ladrões entraram num galinheiro onde existiam trinta galinhas. Cada um levou três galinhas. Quantas ficaram?
Josemar: — Vinte e quatro...
Gurgel: — Resposta errada.
Alécio: — Isso mesmo. Vinte e quatro...
Gurgel — Resposta errada.

Pedro: — Ora, se haviam trinta galinhas, cada um levou três, restaram vinte e quatro. Matemática pura, mano!
Gurgel: — Resposta errada, véi...
Antário, Bendito e Pedro insistiram nas vinte e quatro.
Gurgel: — Vocês são um bando de burros. Se tinham trinta no galinheiro, e cada um dos ladrões levou três, ficaram trinta e seis.
Todos se levantaram furiosos: — Como?
Gurgel: — Eu disse que os ladrões LEVARAM e não ROUBARAM.

Estufou o peito, como se quisesse passar para os demais, como o senhor arrogante, o sabe-tudo:
— As trinta galinhas –, pensem –, se cada um levou três, a conta foi para trinta e seis. Fui claro? Eles LEVARAM, seus idiotas, e não ROUBARAM. A diferença está nessa palavrinha. De novo, para os que ainda estão na minha frente de boca aberta, apalermados. Eles, os ladrões, LEVARAM, ou INCLUÍRAM, ou TROUXERAM e ACRESCENTARAM, e não FURTARAM, ou SUBTRAÍRAM. Quer saber o que eu acho? Vocês estudam, estudam e não sabem pensar, não aprenderam a raciocinar. São, em resumo, sem tirar nem pôr, uns energúmenos de pais e mães. Patetas!

— Ok! Nessa confusão – observou Benedito –, quem de nós acertou ou quem aqui errou mais? Sintetizando a parada: quem é o vencedor de hoje, afinal?
A rapaziada fala alto e esbraveja ao mesmo tempo. Uma babel moderna erguida por torres de mentes vazias:
— Isso mesmo, Gurgel, quem é o vencedor de hoje? Deixa de onda e canta logo a pedra... estou faminto...
— Eu, logicamente. Alguém aqui tem dúvidas? Seus manés... bando de otá...á... á... á... rios...

Diante dos rostos enfurecidos Gurgel precisou se levantar e sair em desabalada carreira, largando para trás a mochila com seus pertences. Pela primeira vez o guri conseguiu colocar seus amiguinhos exasperados e encolerizados em seus calcanhares. Conclusão: os pais ainda não tomaram conhecimento desse fato. Ao meio dia, Gurgel sai de casa em direção ao educandário. Usa uma mochila antiga para despistar. Contudo, tomando cuidado para não ser visto pelos colegas de sala, segue em direção oposta às dependências do ginásio. Os professores já deram falta dele em vista dessas ausências. A diretora, avisada, comunicou oficialmente os pais. Faz mais de três semanas que ele não aparece na instituição escolar.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de São Paulo, Capital.30-5-2025

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4 comentários:

  1. Amigo Jim, obrigado pela sua participação.
    Forte abraço
    Aparecido Raimundo de Souza, de São Paulo, Capital

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  2. EUZINHA, CARINA BRATT, COMO LEITORA assídua dos escritos de Aparecido Raimundo de Souza, muitas vezes até mesmo antes dele enviar para a ‘Cão que Fuma’, tenho percebido, ao ler, que o digníssimo, em seus textos mais recentes, vem se valendo de um tom bem mais descontraído, utilizando o humor de maneira lúdica, brincando com jogos de palavras e interpretações invocando muito o lado das coisas inesperadas. Por exemplo, em ‘O Ruído manifesto em espaço estreito’ acima, ele explora trocadilhos e situações absurdas para gerar surpresa, especialmente quando os personagens tentam resolver desafios de lógica e caem em armadilhas linguísticas. A presença do espertalhão Gurgel como o personagem principal, se mostra um excelente ‘provocador’ e a sua postura arrogante diante dos amigos intensifica o clima cômico, transformando as brincadeiras em um embate pra lá de divertido. Há um uso esperto da ambiguidade em frases como ‘a cavá-lo’, versus ‘a cavalo’, além da inversão de expectativas na questão das galinhas levadas e não roubadas. O desfecho da crônica adiciona um toque elegante ao humor (inesperado) ao mostrar que, no fim das contas, Gurgel paga o preço por sua esperteza exagerada. Ele tenta se dar bem ao manipular as regras e provocar os amigos, mas acaba precisando fugir para evitar represálias. Isso cria um contraste divertido. Como assim divertido? O contraste do ‘mestre das adivinhações’ a ‘fugitivo improvisado’. A conclusão reforça o tom cômico da história, mostrando que nem sempre ser esperto significa sair ganhando. SEGUE NA PARTE DOIS.

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  3. O texto ‘O RUIDO MANIFESTO EM ESPAÇO RESTRITO’, (OPINIÃO VINDA DA PARTE UM), utiliza também muito o humor ao longo das adivinhações e jogos de lógica, brincando com trocadilhos e interpretações inesperadas. A personalidade de Gurgel empresta um tom provocador à história, conduzindo a disputa de maneira arrogante e divertida. O desfecho é um ótimo exemplo de como a esperteza inventada na hora pode se virar contra o próprio personagem, tornando a cena final ainda mais engraçada e imprevisível. Além do humor sedimentado por trocadilhos e interpretações inusitadas, percebam como disse acima, o Aparecido cativa pelo ritmo rápido e pelas interações animadas entre os personagens. A disputa é marcada por provocações inteligentes, e o desfecho, onde Gurgel precisa fugir para evitar represálias, reforça o tom cômico de maneira inesperada. E ao mesmo tempo a construção da escrita se torna elegante. A história mantém o tempo todo um equilíbrio entre a lógica e o absurdo, criando uma experiência divertida e envolvente, mas muito fácil para o leitor. No mesmo tom, o texto me envolveu pela maneira criativa e divertida com que o Aparecido brincou com os trocadilhos e a lógica. A disputa entre os personagens, repito, é animada e gera momentos cômicos inesperados, principalmente quando Gurgel (dando uma de esperto) distorce as regras para se dar bem. O final é especialmente engraçado, pois sua esperteza exagerada se volta contra ele, levando-o a fugir dos amigos e até mesmo evitar a escola. Esse fechamento transforma a história em uma comédia leve e bem construída’ sem contar, mas já o fazendo, ‘Além do humor sedimentado por trocadilhos e interpretações inusitadas, o texto (como todos os demais que ele escreve) cativa pelo ritmo rápido e pelas interações animadas entre os personagens. A disputa é marcada por provocações inteligentes (me refiro, repetindo o já dito, ao desfecho, onde Gurgel precisa fugir ligeiro para evitar represálias. Isso, ao meu entender, reforça de maneira brilhante o tom cômico principalmente quando parte para o trilhar da maneira inesperada. A história, como um todo, não foge ao idiotismo, pelo contrário, mantém um equilíbrio entre a lógica e o absurdo, criando uma experiência divertida e envolvente para o leitor. Se eu fosse dar uma nota, seria dez. Carina Bratt, de São Paulo, Capital.

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