Carina Bratt
O ONIBUS ESTAVA superlotado, com passageiros saindo pelo ladrão. Dois passageiros viajavam do lado esquerdo, acomodados meio do carro. Conversavam animadamente. Um tinha os cabelos desgrenhado e óculos faltando uma lente. Olhava fixamente para o teto, como se visse algo que ninguém mais enxergava. O encostado a janela, vestia um casaco amarelo três vezes maior que ele, pouco se importando com o calor sufocante. Sem parar, num gesto nervoso, tamborilava os dedos no joelho, como se tivesse um ritmo próprio que só ele entendia.
O primeiro inquiriu sem tirar os olhos do teto:
O segundo arqueou uma sobrancelha, intrigado.
— Não estou vendo nenhuma, mas tudo bem. Diga você: Qual é?
— São arrogantes. Acham que brilham sozinhas. Mas sem o espaço escuro, ninguém as notaria...
O segundo riu baixinho e completou.
— Engraçado... isso serve pra nós dois também.
Encarou o teto pela primeira vez.
— Você por acaso acha que somos estrelas?
— Não. Acho que somos o espaço escuro sem estrelas.
O ônibus deu uma freada brusca, interrompendo a conversa.
A multidão que viajava em pé, resmungou, enquanto uma senhora idosa soltou uns palavrões cabeludos.
— Seu imbecil. — Você não está carregando éguas. Se sua mãe estivesse aqui, tudo bem... até entenderia...
O ambiente voltou ao normal. Os dois amigos continuaram indiferentes, imersos na sua própria lógica, como se estivessem em outro universo. Com os sacolejos, os que se faziam em pé e apertados davam a impressão de formarem uma massa única e obesa, obviamente cansada e conformada. Os viventes se agrupavam ali por um motivo apenas. Voltavam para as suas casas, depois de um dia exaustivo na fábrica de biscoitos ‘Me Come Que É Bom.’
Invariavelmente antes das cinco horas da manhã, como a tarde, na volta, se fazia necessário sobreviver às penosas viagens. Claro, menos aqueles dois. Eles não trabalhavam na fábrica. O primeiro, lembrando, o de cabelo desgrenhado e olhos inquietos, seguia fixado no teto com uma intensidade interrogativa e até mesmo meio descomunal. Seu parceiro, apesar do calor, insistia em se manter escudado num casaco largo demais para o seu esqueleto magro. Sem parar, tamborilava os dedos no joelho em um ritmo que só ele entendia.
— Sabe qual o problema das estrelas? — Voltou a insistir o primeiro sem desviar o olhar do teto.
— Não, me diga você!
O que espiava pela janela arqueou as sobrancelhas.
— Algo me diz que são arrogantes. Acham que brilham sozinhas. Mas sem o espaço escuro, ninguém as notaria...
Balançou a cabeça lentamente.
— Engraçado! Isso, meu caro serve pra gente também.
— Você acha que somos estrelas?
— Não. Acho que somos o espaço escuro...
— Uma pergunta besta. E se esse ônibus não tiver destino?
— Claro que tem. Quando embarcamos, olhei para a testa da criatura e o letreiro do itinerário indicava que estávamos indo para a Cidade dos Pés Juntos.
O outro sorriu, como quem sabe algo que ninguém mais tivesse conhecimento.
— E se a informação estiver errada?
Os olhos do primeiro se estreitaram. Ponderou.
— Se estiver errada, talvez essa droga esteja presa numa espécie de ciclo. Indo e vindo, sempre cheio, sempre lotado, sem nunca chegar a lugar nenhum.
— Como as nossas vidas?
Outro silêncio.
— Ou como as nossas mortes, sei lá. Nossas vidas aqui não passam de um ônibus lotado... indo para a Cidade dos Pés Juntos... nunca estive lá, mas algo me diz que...
— Não, não... você está enganado, obtemperou o outro, rosto fechado. A vida é realmente um ônibus lotado em constante movimento. Se ele parar, aí sim, dará ruim. Teremos um problemão.
Os dois sondaram em volta. O coletivo seguia sem parar. A viagem continuava normal. Pelo menos, assim parecia. Vez em quando, uma freada meio estabanada, as pessoas que viajavam em pé, se agarravam umas às outras. Contudo, de alguma forma, os dois amigos pareciam ser os únicos que percebiam que algo estava errado ou não totalmente certo. A atmosfera ao entorno parecia se alterar. Suas vozes, antes abafadas pelo barulho do motor e pelo murmúrio dos passageiros, começavam a chamar atenção.
Um senhor de camisa social sentado no banco destinado aos idosos olhou para todos os lados e franziu a testa. Uma moça com uniforme escolar e de fones de ouvido espiou compridamente fazendo uma varredura, como se procurasse algo que não sabia exatamente o quê.
— Se esse ônibus nunca parar — disse o que insistia em mirar o teto — significa que estamos presos aqui para sempre.
O da janela fez um gesto dramático com as mãos.
— Isso explicaria por que todo mundo aqui tem a mesma expressão. Como se estivessem… como diria, — ah, como se fossem robôs previamente programados.
— Programados?
— Sim. Você reparou que ninguém está reagindo direito ao que estamos dizendo? Para eles, acho que não existimos.
Os olhos do primeiro percorreram o ônibus. De fato, algumas pessoas desviavam o olhar, mas a maioria apenas seguia a sua rotina, como se a conversa dos dois fosse invisível.
— Eles são figurantes.
Foi nesse momento que um camarada irritado resolveu interferir:
— Vocês podem calar a boca? Tem gente tentando chegar em casa em paz! Merda!
Os dois se entreolharam.
— Casa? — Repetiu o do casaco largo. — O amigo irrequieto acredita que tem casa?
O segundo emendou:
— Eles não sabem que estão presos — murmurou o que olhava para todos os lados, mas sempre voltava a sua atenção para o teto. Vai ver esse que falou em merda, precise urgentemente de um banheiro.
O ônibus freou mais uma vez com força. Silêncio. Os passageiros miraram as janelas, em busca de uma resposta. O trajeto parecia o mesmo, ou seja, igual trânsito, as infindáveis fachadas e os semáforos que a cada dia pareciam se multiplicar.
Do nada, os dois se levantaram ao mesmo tempo.
— Acho que é nossa deixa — disse o primeiro.
— Tem toda razão. É agora ou nunca. Vai, vai, vai...
Os passageiros observaram a dupla, enquanto eles se encaminharam para a porta automática. O motorista os encarou, pelo retrovisor.
— Vão ficar aqui?
Sem esperar por resposta, abriu a porta do meio liberando o acesso. Os esquisitos desceram. O sinal seguia fechado. Na calçada, ao olhar de novo para o ônibus, um deles percebeu algo para lá de anormal. O ônibus estava totalmente vazio.
Sem motorista, sem passageiros, sem ruídos. O semáforo, por fim, abriu. O coletivo sem explicação plausível, apesar de sem condutor, seguiu em frente, buscando certamente o final de seu trajeto. Logo adiante, do nada, também sem explicação, se dissolveu na névoa escura da tarde quase noite que insistia em se fazer mormacenta.
— Será que esse lugar é a tal da cidade dos pés junto que você mencionou?
— Não sei ao certo. Mas a meu ver, está mais para a cidade das almas perdidas.
Fica aqui a grande confusão na cabeça dos meus leitores. Esse é o ponto chave! Eles desceram... ou o ônibus apenas os apagou da suposta viagem? Ou nada disso realmente aconteceu?
Ou de outro modo, acrescentando uma pitadinha de mistério. O ônibus, no pior dos mundos, nunca existiu? Minha crônica deste domingo sugere que eles se levantaram e realmente apearam. Entretanto, ao desembarcarem e vasculharem para todos os lados, perceberam que o ônibus com o motorista e todos os demais ocupantes simplesmente, como por encanto, criaram asas e sumiram no ar. Sequer um mínimo ruído de motor. Deixarei bailando no ar perguntas que não querem calar: será que os dois amigos desceram para uma realidade diferente? Ou no pior dos mundos, nunca estiveram naquele coletivo, apenas para começo de conversa?!
Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo, 11-5-2025
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