Carina Bratt
CORRIA UM lindo final de semana. Na noite magnânima, as folhas dançavam ao sabor do vento e o ar carregava um aroma de mistério. Na pequena Atafona (1), cidadezinha localizada na foz do Rio Paraíba do Sul, distrito do município de São João da Barra, no Rio de Janeiro, os moradores sussurravam medrosamente atarantados por conta de um palhaço sinistro que perambulava pelas ruas escuras, a maior parte delas, encharcadas pelo avanço das águas vindas do mar. Os poucos moradores que resistiam em ir embora, chamavam o tal do palhaço, de ‘O Maluco,’ um ser enigmático com um sorriso que gelava a espinha.
O sujeito se fazia sempre ocultado por uma máscara de porcelana pintada com linhas tortuosas e olhos vazios. Dizia-se que ele aparecia apenas nas noites de lua cheia, quando a escuridão se tornava mais densa. Acácia e Luana, as duas irmãs, menos de meia hora acabavam de deixar a casa de uma amiga adoentada, a cadeirante Elisa, por volta de onze da noite. A casa de Elisa ficava na rua Joaquim de Brito Machado número 85 e elas moravam em outra viela, um projeto de calçadão que o prefeito vivia dizendo que seria uma ‘meia avenida’ e essa se fazia pouco distanciada da residência de Elisa. Precisavam, para chegar até ela, cruzar uma parte do caminho que se fazia na mais completa desolação.
Elas haviam perdido o pai recentemente, vítima de uma morte inexplicável. O sorriso da morte parecia persegui-las, como se o próprio abismo as observasse com olhos esbugalhados e famintos. O tal ‘bufão’ não matava com violência. Não havia sangue ou gritos. Seria ele meio abichado, ou um veado inteiro? O aborígene agia simplesmente se aproximando com seu sorriso gélido se alargando, e, num gesto calmo e tranquilo tocava suavemente o coração das vítimas. Em seguida os escolhidos desfaleciam, os medos mais que triplicavam e se faziam fixos. A tez do impostor metido a Arrelia, (nesses momentos infames), se amoldurava para lá de esquisita.
Lembrava a figura do ‘Mula-fula’ depois de ter sido rejeitado na cova (me perdoem, caras leitoras), na alcova pela Sanja. Sanja, da Canja Morna, só lembrando, é uma tresloucada que traz à lembrança uma penosa com a qual se juntou o caeteense. ‘O metido a Chaves,’ nesses instantes, sussurrava segredos obscuros, como se discursasse um mantra em javanês. Descobriram, depois, que ele nunca ouvira falar em Lima Barreto. Acácia e Luana, a bem da verdade, não sabiam se o infeliz era real ou uma manifestação de suas dores pelo pai que havia partido. Às vezes ‘o arlequim’ suscitava um fantasma moldado a Clodovil, noutras um demônio espalhafatoso como um ministro raivoso do STF ciscando impropérios com as patas.
Mas uma coisa se fazia certa: ele estava ligado à morte, como um fio invisível que o conduzia ao insondável. Uma certa noite, as irmãs decidiram enfrentar a assombração, fosse lá o que fosse. Caminharam, no dia anterior, até a igreja de Nossa Senhora da Penha, (padroeira de Atafona), oraram, e, no mesmo vácuo, partiram até os escombros de um antigo circo que pegara fogo (como o ‘Gran-Circus norte-americano’, em Niterói, ou mais precisamente na Praça do Expedicionário, em frente à estação de trem da antiga Leopoldina. Esse local de divertimento, se fazia abandonado, onde a comunidade desfalcada afirmava, sem muita convicção que ele se escondia.
O vento uivava feito um cão sem dono, e as estrelas pareciam distantes demais, como se tivessem fugido para um paraíso fiscal recém-criado em Dubai. De fato, o ‘Maluco’ estava lá, esperando por elas. Espantoso e incrível. Seu sorriso tenebroso se alargou quando as viu. Acácia e Luana trocaram olhares determinados e se aproximaram. A coisa, de pronto, não atacou. Em vez disso, sussurrou, voz de taquara rachada:
— Vocês buscam respostas, não é mesmo? O sorriso da morte é apenas o reflexo do vazio interior, ou seja, o meu próprio ser oco e sem nada, em toda a sua extensão dentro de meu ser. Saibam lindas criaturas, que a morte não é o fim, mas uma passagem enigmática para algo além.
As duas irmãs tremeram. Ele, as acalmou dizendo:
— Seu pai não foi abandonado. Ele partiu para outro plano, onde o sorriso da morte não existe. Vocês também podem encontrar essa paz de espírito da qual eu falo e vivo agora.
Após essas palavras, ‘O Maluco’ desapareceu em meio aos destroços do finado circo, deixando as duas garotas perplexas. Até hoje, Acácia e Luana nunca mais o viram. Tampouco os moradores. Todavia, o sorriso lúgubre permaneceu em suas memórias. Ambas as irmãs, depois desse evento, seguiram seus próprios caminhos, buscando entender o enigma do tal cômico de trajes bizarros. Talvez, um dia, em algum lugar distanciado da bucólica Atafona, ou melhor dito, além da vida, ambas as consanguíneas encontrem as respostas que tanto almejavam em suas indagações.
(*) 1) — Sobre Atafona: Uma localidade outrora paradisíaca, situada no distrito de São João da Barra, no Rio de Janeiro. Faz parte da região Norte Fluminense. Muitas famílias abandonaram suas casas, às carreiras, bem como os inúmeros comerciantes e se mudaram para outras localidades. A maioria das residências, prédios, padarias, farmácias, escritórios, supermercados, escolas, carros e ônibus foram destruídos, pela invasão severa do mar. Essa história do palhaço é fictícia, as irmãs, não. Hoje Acácia e Luana residem em Bonsucesso.
Apenas trouxa à baila esse trabalho, para mostrar ao mundo o descaso, a falta de vergonha, de polidez, a ausência de decoro, de hombridade, dos nossos governantes, prefeitos e outras merdas existentes, usque a ausência maior do respeito às vidas humanas, ou seja, (o povo, em geral). Logo, seremos todos, sem exceção, moradores de ruas e desabrigados, jogados às traças, ao deus-dará, de uma Atafona que tende, em face da erosão crônica e da tomada furiosa do mar, entre outros eventos, a desaparecermos do mapa.
Título e Texto: Carina Bratt, de Jarinu, interior de São Paulo, 4-5-2025
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