quinta-feira, 8 de maio de 2025

[Daqui e Dali] As formigas só andam por celeiros cheios


Humberto Pinho da Silva

Dona Maria José de Noronha e Sá vivia em aparatoso palacete, cercado de vistoso jardim onde medravam roseiras e frondosas árvores, nas cercanias da casa onde nasci.

Muitas vezes a vi passar pela minha rua, no seu Mercedes preto, umas vezes ao volante, outras com o "chauffeur", como gostava de dizer.

No seu “solar” realizavam-se com frequência festins esplendorosos, onde a elite da sociedade permanecia até altas horas da madrugada.

Cansada da agitada vida social, resolveu recolher-se com o marido a espaçoso apartamento de sóbrio prédio, erguido no bairro nobre da cidade.

Todas as tardes, recebia na aconchegante salinha, que permanecia sempre em repousante penumbra, íntimas amigas.

Frequentemente a visitava. Proseávamos do tempo que já não é, e relembrávamos figuras típicas que viveram no bairro onde nascemos, em amena e festiva cavaqueira.

Uma tarde de julho, quando já declinava o sol, após a merenda, que era sempre a mesma – chá preto e torradas – confessou-me amarguradamente, quase à puridade:

“Sabes?” – Tratava-me ternamente por tu, como se seu filho fosse – "Já não tenho tantas amigas como outrora: umas faleceram; outras foram morar para outras cidades... e ainda outras falam, certamente, com seus botões: ‘abandonou o palacete, trocou-o por prédio de Esquerdo–Direito, já não deve estar bem de finanças...’ afastaram-se. Quem sabe? Receiam que lhes peça alguma coisinha?..."

Camilo, lamentava-se contrito de estar cego, e os numerosos amigos que o acompanharam nos dias festivos, não o irem visitar, pensando: o que vamos lá fazer, está invisual?

Também Job, figura bíblica, era rico. Possuía herdade onde labutavam dezenas de trabalhadores. De súbito, tudo perdeu, até mulher e filhos. Só, doente, abandonado por todos, era consolado por três leais amigos, que lamentavam sua triste sorte.

São sempre assim os amigos – há raras exceções –, semelhantes às formigas que só rondam celeiros cheios.

Com a minha boa amiga, já falecida, os amigos apartaram-se por terem pensado, erradamente, que estava pobre, e dizem:

“O que vamos lá fazer? Já não precisámos dela...”

Mas algumas já precisaram, e muito...

A ingratidão humana não tem limite.

Título e Texto: Humberto Pinho da Silva, abril de 2025

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