Carina Bratt
CHOVIA TORRENCIALMENTE. O céu parecia chorar ao som barulhento de um dilúvio interminável. Ainda deitada, estiquei o pescoço e esquadrinhei a barulheira pelo vitrô. Me escondia num quartinho de uma casa velha e cheia de rugas, que se erguia rente à rua. Nossa! A cara do tempo, dava a impressão sinistra de que todas as mágoas do mundo estivessem abraçadas aquele aguaceiro que rolava sem dó nem piedade. Sozinha comigo mesma, debaixo de uma luz fraca vinda de uma lâmpada pequena iluminando o cômodo (tinha um medo danado de escuro), desviei os olhos. Mirei à porta de entrada. Nesse instante, cruzei com o olho mágico orificiado nela. Não era esse cidadão (o olho mágico, bem entendido), um vigilante comum, desses que você encontra em qualquer espelunca de entrada. Se fazia, apesar da pobreza do lugar, numa coisa significantemente diferente. Mostrava ser um sujeito posudo, dono de si e especial. Parecia ter vida própria, como se escondesse segredos e histórias de antigos inquilinos vindos antes de mim.
Pulei do colchonete e me aproximei, curiosa. Bisbilhotei através dele.
Do outro lado –, ou seja –, o de fora, topei com um mundo completamente
diferente. Esquadrinhei uma rua (rua não, viela) estreita, com casas antigas e
janelas descoloridas sonhando com escancaros de um canto a outro dos ouvidos.
Tipo uma mala sem alça. Guarda chuvas e sombrinhas passavam de um lado e de
outro com pessoas apressadas. A cena parecia, tipo assim, uma feira de domingo.
Um furdunço saído de um conto de fadas (sem fadas) de um escritor iniciante e
sem noção do que realmente pretendia escrever. Fiquei ali, colada à madeira
carcomida, na ponta dos dedos dos pés (das mãos seria impossível), esmerilhando
o dia nublado, como se fosse um voyeur (melhor seria ‘uma voyeur’) das vidas
alheias. Num repente, um casal de idosos surgiu dançando. Seus ossos se moviam
em harmonia. Em seguida, surgiram crianças brincando na calçada. Piás e gurias
completamente encharcadas, os cabelos e roupas pingando como se fossem goteiras
em telhas compradas no tempo ‘do ronca.’
Elas riam estabanadamente e corriam sem preocupações. Um homem solitário sentado em um banco de madeira sem pernas (não o homem, o banco), olhava para o infinito como se buscasse respostas. O olho mágico me assediava intercalando momentos de felicidade, tristeza, amor e solidão. Não necessariamente nessa ordem. Como se eu pudesse sentir as emoções daquelas pobres almas vivendo as suas vidas por um instante sem hora de acabar. Foi então, algo estranho aconteceu. Uma mulher com cara de Frida Mancini –, perdão –, de Arlete Salles, vestida de amarelo parou em frente. A engraçadinha comboiou a sua falta do que fazer diretamente para o olho mágico, como se soubesse que eu estava aqui dentro igual a ela, filmando, perscrutando como se buscasse algo. Seus olhos se faziam profundos e cheios de um mistério meio que falso. Num dado momento acenou com a mão esquerda e sorriu para mim. Eu não sabia o que fazer. Me senti como se embrenhada na trama do novelista Daniel Ortiz, como se, por mero acaso, fosse uma de suas netas, ou mais precisamente a Andrômeda.