Helena Garrido
A primeira década do século XXI foi para
Portugal rica em ilusões que se traduziram numa pesada fatura. Resta-nos
esperar que estes últimos dois anos não estejam a agravar a conta já muito
elevada.
Erros de diagnóstico dos
efeitos do euro que se traduziram em políticas económicas e financeiras incorretas
e uma década em que alguns grandes empresários exploraram rendas que foram
viabilizadas pelos governos explicam, em termos gerais, um período que podemos
considerar negro na nossa recente história de democracia.
De 2001 a 2011 o rendimento
por habitante em termos reais (ou seja, sem a subida de preços) aumentou 1,8% e
na primeira década e meia do século XXI o crescimento limitou-se a 0,9%.
Vivemos basicamente 15 anos de estagnação. E só sentimos a dor dessa estagnação
nos três anos da troika. Os primeiros anos da passagem do milénio foram vividos
em grande euforia. A construção e a obra pública a crédito e os sonhos
megalómanos de empresas globais alimentaram a euforia.
A crise financeira iniciada em
2007 foi apenas o catalisador que nos conduziu de regresso à realidade. É de
facto mais confortável dizer que foi a crise financeira a causadora dos nossos
problemas. Mas isso não é a realidade. Os nossos problemas económicos e
financeiros estavam a ser construídos desde finais da década de 90 do século
XX. Nessa altura, a maioria dos economistas e dos governantes não perceberam
que o euro apenas alargava a fronteira das possibilidades de endividamento, não
acabava com ela.
O primeiro grande erro de
avaliação está nos efeitos do euro. Vítor Constâncio e Luís Campos e Cunha
estiveram entre os principais economistas portugueses que desvalorizaram o
crescimento da dívida privada, considerando que do outro lado estavam cativos. Refletiam
uma convicção que também estava basicamente generalizada no BCE, em Frankfurt,
e merecia fundamentação académica, como se pode ler num trabalho de 2002 de Olivier Blanchard e Francesco Giavazzi. Blanchard corrige
mais tarde a sua perspectiva em 2006 referindo-se diretamente a Portugal.
Simplificadamente, o argumento
usava o paralelismo com os Estados Unidos, para defender que o défice externo
de um Estado do Euro era irrelevante, justificando-se por isso que a Comissão
Europeia e o BCE olhassem para os desequilíbrios externos de Portugal e da
Grécia com uma “negligência benigna”. Blanchard corrige a sua posição, mas nem
Vítor Constâncio nem o governo da altura o fazem. A hora da verdade chegou com
o pânico da crise financeiro. Aí percebeu-se da pior forma, que o Estado
português (como o grego) no euro, não era o mesmo de o Estado norte-americano.
O que se podia e devia ter
feito diferente? A política orçamental deveria ter sido muito mais contracionista,
para arrefecer a euforia gerada pelas taxas de juro baixas – para um país como
Portugal – e a ilusão de financiamento infinito. Não foi isso que aconteceu. O
próprio Estado entrou na loucura do crédito fácil e barato e os investimentos
foram, na sua maioria, ruinosos. Os projetos não geraram sequer o dinheiro
suficiente para pagar a dívida que se contraiu.
Paralelamente o Governo então
liderado por José Sócrates seguiu uma política mais do que intervencionista de
intromissão nos negócios. Assistimos ao caso BCP que se saldou numa brutal
perda de valor para o banco e para a CGD. E no caso da Caixa vimos a sua
entrada nos mais variados negócios de racionalidade duvidosa, de Vale do Lobo à
La Seda em Espanha. Em boa parte dos casos convergimos, invariavelmente, para o
BES através dos protagonistas dos negócios.
Hoje temos excedente externo
mas carregamos o peso da dívida herdada de mais de uma década de uma política
económica errada, com a complacência das autoridades europeias. Temos o nosso
futuro hipotecado, seja qual for a solução que se venha a encontrar para a
nossa dívida.
Governos responsáveis não
devem criar a ilusão de que tudo está resolvido, que vivemos no melhor dos
mundos. O ano de 2016 e eventualmente o de 2017 vai ser apenas um intervalo de correções
que teremos inevitavelmente de fazer caso queiramos salvar realmente o Estado
social. Quanto mais tarde o Governo de António Costa começar a tomar as
medidas, que são necessárias no Estado e na Segurança Social, maior é a ameaça
que enfrenta o país que conhecemos e que queremos ter. O que está em causa é o
país da educação e saúde praticamente gratuita, é o Estado que se comprometeu conosco
a apoiar-nos na doença, no desemprego e na velhice.
“Os populismos alimentam-se
das deficiências, lentidões e incompetências do poder político”, disse o
Presidente da República no seu discurso deste ano na cerimónia do 25 de Abril
de 1974. Criar o risco, como já se criou, de ser obrigado a aplicar de novo uma
política de austeridade com cortes salariais é abrir a porta a esses
populismos. É abrir a porta àquilo que defendem o PCP e o Bloco de Esquerda, um
Portugal que não é virado para o mundo, que não pertence ao euro nem à União
Europeia.
As incompetências do passado
conduziram-nos aos braços da troika, a uma política de austeridade e a um
desemprego históricos. Brincar com o fogo como estamos agora a fazer é desafiar
a resistência e responsabilidade que o povo português revelou e ainda está a
ter.
Título e Texto: Helena Garrido, Observador,
27-4-2017
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