Maria João Marques
Que o PS se prepara para
truques palacianos de assalto ao poder, mesmo sem qualquer legitimidade
democrática, é um dado adquirido. Tal como a claríssima veia antidemocrática de
muita gente do PS.
Quando era criança, nos tempos
antes da queda do Muro de Berlim, uma das minhas perplexidades de infância era
o facto, relatado por pai e irmãos, de a Alemanha que se chamava República
Democrática Alemã ser, afinal, não democrática. E de a Alemanha democrática não
ter nada de democrático no nome.
Anos mais tarde convenci-me
que este paradoxo toponomástico se devia ao cinismo comum dos regimes
comunistas de colocar no nome o contrário da realidade nomeada. Mais ou menos
como Sir Humphrey Appleby, da série Sim, Senhor Ministro aconselhava ao
ministro Jim Hacker: quando nos queremos livrar de alguma política bem-sonante
mas que desagrade aos desígnios do político, é colocá-la no título do documento
que a institui e gastar o resto das linhas e páginas com outra coisa qualquer.
Só há poucos anos – e através
de uma observação quase científica dos dirigentes do PS – percebi que há um
conflito na definição de ‘democracia’ e de ‘democrático’ (já aqui elaborei
sobre o assunto). Nas democracias tradicionais costuma-se considerar que a
legitimidade dos governos vem dos votos obtidos em eleições livres e
universais. É um raciocínio simples, que esperaríamos estar ao alcance até das
almas socialistas (pelo menos António Costa tem espalhados pelo país cartazes
dizendo ‘É o seu voto que decide’): quem tem mais votos ou quem elege mais
representantes, governa. Tocqueville divagou até sobre a democracia como a
ditadura da maioria.
Mas isso é para as democracias
consolidadas, nada que obscureça o fino e apurado pensamento político dessas
grandes mentes do PS, de Jorge Coelho a Porfírio Silva. Por cá não somos
picuinhas com essa dos votos legitimarem (e os cartazes de Costa são só para
enganar os tolos). Por cá a legitimidade para governar vem, qual Antigo Regime
de Deus para o Rei, de alguma energia cósmica de alguma galáxia muito, muito
distante para o PS.
Foi por isto que durante esta
legislatura tivemos Mário Soares e a tropa fandanga que o rodeia (e os acenos
concordantes e enternecidos de todo o PS) a apelar constantemente à violência
popular contra o Governo e o Presidente da República democraticamente eleitos.
Porque para Soares e tropa fandanga, a legitimidade para governar e presidir
não vem dos votos. Vem da aprovação de uma espécie de Conselho dos Guardiães
iraniano de socialistas, laicos e republicanos que concedem a sua aprovação a
quem ganhou eleições. E quando essa aprovação se esvai, tais eminências esperam
que Presidente demita a correr o governo que incorreu no desagrado dos donos da
democracia. (Isto, claro, se o governo, que se quer temente aos Anciãos, não se
demitir – como faria um governo decente – de imediato.) Como ao Presidente não
há quem demita, é sugerir com sonsice à população que se lhe dê pancadaria se
ousar sair dos seus aposentos. Só anda na rua quem o Conselho dos Guardiães
socialistas, laicos e republicanos deixam. Que não haja aí algum espevitado que
pense que pode usufruir do espaço público só porque paga impostos ou é cidadão
nacional.
Neste sentido, que um governo
de coligação tenha terminado o mandato foi um enorme passo para a normalização
democrática. Que o tenha feito no meio da gritaria de Soares e tropa fandanga,
ainda mais marcante torna o feito. A legitimidade para governar vem do voto,
não vem dos anciãos do PS. Temos isto a agradecer a Cavaco Silva. (E lembremos
que em 2004, para Sampaio, contou mais a manutenção do ascendente do do PS.)
Foi também pelo direito divino
estelar do PS que nos últimos dias temos assistido às tendências ditatoriais de
António Costa. Quando se aventou que a coligação poderia ter mais mandatos na
AR do que o PS, tendo este mais votos, os socialistas logo clamaram que o que
interessa é o número de votos. Quando as sondagens começaram a apresentar a
coligação à frente do PS com distância razoável, algo mais surreal sucedeu.
Costa fez saber que, ganhando ou perdendo as eleições, ele pretende governar.
Os eleitores que tenham
paciência, mas o candidato Costa meteu na cabeça que é o homem providencial
para salvar o país (que tenha aplaudido todas as políticas que faliram o país
também é um mero detalhe, e quem liga a detalhes?), as eleições são um
formalismo (enfim, as boas gentes do PS têm de suportar estes formalismos de
vez em quando para fingirem ardor democrata), mas, vamos lá falar a sério, quem
decide quem é o próximo primeiro-ministro é o capricho de António Costa. Oh
caro eleitor, não levou a sério o cartaz do PS que contém a cara de António
Costa e a tal frase ‘É o seu voto que decide’, pois não? Ou foi crédulo a esse
ponto?
Que o PS se prepara para
truques palacianos de assalto ao poder, eventualmente de acordo com a letra da
lei mas sem qualquer legitimidade democrática, é um dado adquirido. Outro dado
adquirido que temos de começar a esmiuçar é a claríssima veia antidemocrática
de muita gente do PS. Se perderem as eleições não sei o que lhes recomende. Se
cursos de ciência política se abstinência na escolha de líderes egomaníacos.
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