Jacinto Flecha
A memória excepcional de um
americano falecido há poucos anos chegava ao extremo de nunca esquecer nada do
que leu. Era capaz de repetir, palavra por palavra, todos os doze mil livros
lidos durante a vida. Podia até repetir ao mesmo tempo a leitura das duas
páginas de um livro aberto. Houve pessoas capazes de repetir na mesma ordem
dois mil algarismos, depois de lidos em voz alta por outra pessoa. Em outros
casos essa memória fotográfica foi desperdiçada decorando listas telefônicas
inteiras. Tanto maior o desperdício por se tornarem inúteis essas informações
no ano seguinte, e atualmente as listas nem são impressas.
Qual a utilidade dessas
memórias, além de um exibicionismo vazio seguido de aplausos enganosos? Fez
melhor uso de sua memória extraordinária um inglês chefe da contraespionagem
britânica durante a guerra, onde praticou proezas invejáveis. Ele se lembrava,
por exemplo, dos nomes de todos os convidados da sua festa de sexto
aniversário, os presentes de cada um, as roupas que usaram na festa…
Passemos a outro aspecto do
assunto. Numa conversa recente, mencionei um colega que se tornou famoso dentro
da especialidade. Eu havia perdido completamente o contato com esse colega
depois da conclusão do curso, e não consegui lembrar o nome para informá-lo ao
interlocutor. Tive tempo depois para colocar-me mentalmente nos vários
ambientes em que convivemos durante o curso, e foi fácil recordar o nome
completo. Aliás, nome pouco frequente, de origem eslava.
A memória fotográfica do
americano resultava de uma doença rara, que o impedia de esquecer. Você pode
estranhar que se trate de doença, mas o fato é que todos precisamos esquecer
seletivamente o que vimos, ouvimos, lemos, imaginamos. Se você pede a alguém um
número de telefone, geralmente pode memorizá-lo durante alguns minutos, até
completar uma ligação. No dia seguinte, provavelmente não será capaz disso, se
não o anotou ou não se esforçou por memorizá-lo. Estudos recentes de
neurociência estão desvendando o mecanismo pelo qual as informações “importantes”
são memorizadas, enquanto as outras são arquivadas de modo mais tênue,
acessíveis por meio de associações de dados ou imagens. É um processo complexo,
que se passa durante o sono e está relacionado com os sonhos.
Quando esqueço durante a
conversa um dado como o nome do meu colega, geralmente ele pode ser encontrado
na memória. Mas se o nome dele ocupa na memória um espaço diferente do que está
sendo usado durante a atual conversa, é necessário um trabalho mais lento,
semelhante ao que se faz para passar do 18º andar de um edifício para o 13º de
outro. Raramente se consegue fazer isso por “ligação direta”, é necessário
descer do local onde estou até o andar térreo, caminhar até o outro edifício,
subir ao 13º andar e entrar na outra sala ou apartamento. Foi o que minha
memória fez, para lembrar o nome do colega.
Algumas vezes eu lamento minha
má memória, mas de fato estou bastante satisfeito com o quinhão que me coube na
distribuição que Deus fez. Nem de longe eu gostaria de estar na pele daquele
americano, que não esquecia nada. Na vida de cada um há coisas agradáveis de
lembrar, e outras merecem o esquecimento.
Quando mencionei acima a
necessidade de o cérebro “esquecer” coisas de pouca importância, não citei os
motivos para ele Inteligênciafazer uma espécie de faxina seletiva, a fim de
guardar o que é importante, mas também deixar vínculos para os dados pouco
importantes serem encontrados quando se tornem necessários. Se a neurociência
já elucidou isso, a informação ainda não chegou ao meu conhecimento. Sou livre,
portanto, para fazer especulações, tentando esclarecer o processo.
Por mais numerosas que sejam
as sinapses (conexões) de axônios e dendritos dos cerca de cem bilhões de
neurônios, ocupar todas elas com a lembrança de tudo acabaria por esgotar a
capacidade de arquivamento. Pior, bem pior, impediria o cérebro de pensar,
raciocinar, ligar um dado a outro que esteja arquivado em outra região do
cérebro. A inteligência seria irremediavelmente afetada. Como fazer isso, se
todos os caminhos estão congestionados, bloqueados com dados da memória?
A etimologia explica que a
palavra inteligência provém de intus legere (ler dentro) ou inter ligare (ligar
coisas entre si). É a capacidade de interligar os conhecimentos, compreender,
tirar conclusões. Portanto, relacionar entre si os dados memorizados é muito
mais importante do que a simples memorização.
Um personagem de país asiático
referiu-se numa entrevista à escassa inteligência do seu povo: Não somos um
povo de grande inteligência, basta dizer que prêmios Nobel não são comuns por
lá. O que procuramos fazer, para atingir nosso progresso, é otimizar a
mediocridade.
Eis aí uma atitude inteligente
de um povo, apesar da mediocridade que esse seu representante alegou. O esforço
de uma pessoa dotada de inteligência medíocre pode gerar bons resultados, muito
melhores que os de um inteligente que não se esforça. Não me consta que haja
meio de otimizar a vagabundagem, daí termos de nos resignar com o submundo
resultante de certas preferências pindorâmicas.
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