Helena Matos
Onde andam os amigos de Sócrates, o
jornalista ofegante e os esfomeados? Circulam por aí porque em Portugal, as
espécies, politicamente falando, não evoluem, circulam
Em Portugal as espécies não
evoluem, circulam. Ou mais corretamente dizendo, hoje estão num grupo, amanhã
regressam àquele em que estiveram anteriormente e em cada uma dessas passagens
retornam ao que já foram como se nunca o tivessem deixado de ser. Vivem o
presente sem passado. Dessa grande circulação das espécies entre o último
semestre de 2015 e o momento presente temos a destacar os seguintes mutantes.
Ou reencarnados numa perspectiva mais teológica:
Os amigos de Sócrates.
Eram aos milhares. Todos lhe
telefonavam. Todos o abraçavam. Contavam-nos as graças – e tudo nele tinha
graça! – reverenciavam-no, achavam que com ele o PS era imbatível. Não havia
opositor que, afiançavam os amigos de Sócrates que eram por assim dizer a quase
totalidade do país falante, não fosse esmagado pela superioridade argumentativa
de Sócrates. Dos membros dos seus governos jamais vinha uma palavra de
discordância em relação ao primeiro-ministro.
Todo este numeroso e
tonitruante grupo desapareceu. Nem os dinossauros se sumiram de forma tão
abrupta e definitiva. Quanto aos governos que Sócrates chefiou, face à
desresponsabilização geral dos seus membros, quase somos levados a acreditar
que esses governos foram apenas compostos por Sócrates que numas horas era
primeiro-ministro, noutras ministro com pasta noutras sem pasta, noutras
secretário de Estado… Sócrates tinha interesse pessoal num determinado negócio
ou contato internacional? Numa espécie de desdobramento pessoano Sócrates
primeiro-ministro tratava com o seu heterónimo ministro da tutela dessa
negociação. Sócrates estava interessado num apoio a determinada empresa? Pois
ele Sócrates tratava de tudo consigo mesmo. Aliás a fazer fé na desresponsabilização
presente o conselho de ministros era Sócrates mais Sócrates e só Sócrates.
Seja como for ninguém achou
nada estranho, ninguém percebeu nada. Só falta dizer que foram todos enganados.
O caso é zoologicamente falando interessantíssimo pois estas pessoas, que de si
mesmas, entre 2005 e 2011, declaram não ter percebido nada do que se passava
diante dos seus olhos, estão agora, muitas delas, no grupo dos clarividentes,
perspicazes e argutos que integram e apoiam o atual governo. Fazem-no com
idêntico proselitismo e presume-se que dotados da mesma disponibilidade do
esqueleto para passarem a novo estado quando necessário.
Os esfomeados, os
indignados e os desistentes.
Entre 2011 e 2015 estava um em
cada esquina. Aliás a fome estava por todo o lado. Se o desemprego baixava era
porque os desistentes já nem procuravam trabalho pois não se conseguiam
arrastar, mergulhados na depressão e falta de vitaminas. Diante de cada
microfone estava um indignado.
Agora os esfomeados
reconverteram-se em dinamizadores de programas para combater os erros
alimentares. Os indignados esperam por ordens para saber se se devem indignar
um poucochinho e se já chegou a hora de irem buscar outra vez as bandeiras
negras e os desistentes estão hiperativos de tanto optimismo.
A banhos devem andar a senhora
cor-de-rosa mais a outra senhora de bege que fez uma inolvidável performance do
filho emigrado durante a última campanha eleitoral. Todas estas pessoas
trocaram o grupo etnográfico do neorrealismo pela associação cultural das maravilhas
do governo das esquerdas. Desempenham ambos os papéis com empenho e brio.
O jornalista ofegante.
O pobre não aguentava mais.
Era a passada forte a acompanhar as manifestações dos esfomeados, os
acampamentos dos indignados, o olhar faiscante do senhor Nogueira. Os diretos
minuto a minuto sempre à espera que fosse aquele o dia da invasão do
parlamento, da queda do governo. A denúncia ininterrupta das negociações dos
bastidores.
Certamente por conselho do seu
pneumologista o jornalista ofegantemente indignado transfigurou-se no
jornalista ora venerando e obrigado ora militante. Nada o perturba. Mesmo casos
do domínio do paranormal como Mário Centeno numa semana estar a ser dado como
presidente do Eurogrupo – só faltou gritar “agarrem-no senão levam-no!” – e na
outra o primeiro-ministro vir anunciar o apoio português ao ministro espanhol
Guindos para tal cargo o levam a fazer uma perguntinha um pouco mais incómoda.
Qualquer coisa do tipo: Vossa Excelência perdoará a ousadia, mas como há por aí
quem sempre duvide do supremo acerto das decisões do Governo em geral e de
Vossa Excelência em particular, venho perguntar, para que a Nação fique
esclarecida, quem o Governo português apoia – o ministro Mário Centeno ou, numa
manobra de grande alcance estratégico, o ministro espanhol Guindos? (Já agora,
algum jornalista ou comentador conseguirá descortinar uma única vantagem para
Portugal – basta uma – da escolha de Guindos para o lugar de Dijsselbloem?)
O jornalista ofegante, agora
militante, deixou de perguntar. Agora anuncia, sobretudo anuncia tudo aquilo
que de maravilhoso o Governo vai obrigar as empresas a fazer: ora são as
penalizações para as empresas que contratam precários; ora as quotas para
obrigar empresas cotadas em bolsa a incluir 33,3% de mulheres nos seus quadros,
a que se junta o anúncio da obrigatoriedade de “apresentação das estatísticas
das disparidades salariais de género, com a indicação das respetivas médias.”
Todos os dias o jornalista
outrora ofegante de indignação anuncia irradiando felicidade que “o Governo
quer” – a expressão “o Governo quer” é agora uma espécie de salvo-conduto – e
quando àquilo que o “o Governo quer” se junta a expressão “obrigar as empresas”
os amanhãs cantam, o tempo novo, as notícias rebrilham e Portugal avança.
Os dirigentes do PSD que
acham que este partido deve ser uma sucursal do PS.
Não há futuro mais risonho que
integrar este grupo. Qualquer líder do PSD que tenha sofrido nessa qualidade
uma forte derrota ou que tenha conduzido o seu partido à irrelevância torna-se
uma figura incontornável, um poço de saber e, claro, um comentador de
referência. Se a par disso reconhecer a superioridade do líder do PS em funções
face a quem lhe sucedeu na liderança do PSD (invariavelmente uma pessoa sem
ideias, alma e consciência social) então está no Olimpo mediático.
Podem até acontecer milagres.
Por exemplo, Manuela Ferreira Leite, pessoa que como sabe era “a velha” quando
debatia com Sócrates, o qual claramente a esmagava nos debates nomeadamente
naqueles em que a dita velha lhe perguntava face ao anúncio de estrambólicos
investimentos “Onde é que está o dinheiro?”, tornou-se uma comentadora
consensual quando, já derrotada, passou a ocupar boa parte das suas
intervenções a criticar Passos Coelho. Não só nunca mais foi ridicularizada
como, pasme-se, deixou de ser velha! Voltará a sê-lo mal critique António
Costa. Note-se que este grupo só existe no ecossistema PSD. Encontrar um
opositor ao líder do PS em funções em qualquer jornal, revista, rádio,
televisão, boletim ou papel volante tornou-se com Sócrates e António Costa uma
tarefa biologicamente falando quase impossível.
Espécie recentemente
descoberta.
A Austrália tem o
ornitorrinco, nas florestas do Bornéu volta e meia descobre-se um ser de
aspecto bizarro que logo é anunciado como espécie até agora desconhecida, mas
que afinal existe há milhões de anos e que mal foi descoberta já está em perigo
de extinção. Nós para lá dos ovos dos dinossauros na Lourinhã e do menino do
Lapedo que pôs os arqueólogos literalmente à chapada por causa dos cruzamentos
entre o Cro-magnon e o Homo sapiens neandertalensis não
tínhamos nada de relevante até que apareceu o presidente do povo. O presidente
do povo é um ser que nasceu nas televisões, viveu nelas e prolonga o seu
mandato nelas. Correto seria chamar-lhe presidente dos diretos televisivos, mas
como as televisões tendem a confundir o povo com a audiência, o presidente do
povo é a expressão vulgarizada. Confundidos devem andar Eanes, Sampaio e Cavaco
Silva, todos eles devidamente eleitos pelo povo, mas que não são nem foram
(felizmente para eles e para nós!) considerados presidentes do povo. A evolução
do nosso endémico “presidente do povo” é por enquanto um enigma, mas o
ecossistema à sua volta começa a apresentar sinais de forte degradação.
Tem razão: falta o socialista na questão
ResponderExcluirA propósito do que escrevi no Observador sobre "Os dirigentes do PSD que acham que este partido deve ser uma sucursal do PS. Não há futuro mais risonho que integrar este grupo. Qualquer líder do PSD que tenha sofrido nessa qualidade uma forte derrota ou que tenha conduzido o seu partido à irrelevância torna-se uma figura incontornável, um poço de saber e, claro, um comentador de referência. Se a par disso reconhecer a superioridade do líder do PS em funções face a quem lhe sucedeu na liderança do PSD (invariavelmente uma pessoa sem ideias, alma e consciência social) então está no Olimpo mediático. (...) Encontrar um opositor ao líder do PS em funções em qualquer jornal, revista, rádio, televisão, boletim ou papel volante tornou-se com Sócrates e António Costa uma tarefa biologicamente falando quase impossível."
Uma alma que assina Penélope - mas por que Tróias andará Ulisses? - assinalou que devo estar "meia louca" porque além da minha pessoa só no Observador "blogue/jornal digital Observador, que mais opositores ao Governo (e ao seu líder) alberga" escrevem "José Manuel Fernandes, Rui Ramos, Alberto Gonçalves, Vasco Pulido Valente, Helena Garrido, o padre Portocarrero, a Maria João Avilez e outros de igual calibre e pensamento"
A estes junta a assisada Penélope os nomes de "Paulo Rangel, João Miguel Tavares, os Saraivas, o Barreto, o César das Neves, mais três quartos dos escrevinhadores do Expresso, quatro quintos dos do Correio da Manhã e por aí fora."
Mas minha cara Penélope (não vamos ter de mudar o género à Penélope, pois não?) eu referia-me a dirigentes socialistas, ex-dirigentes, críticos dentro do partido. e não a comentadores. Na esperança que enquanta guarda pelo seu Ulisses em vez de tecer consiga encontrar tais criaturas me despeço.
Helena Matos
https://blasfemias.net/2017/04/18/tem-razao-falta-o-socialista-na-questao/