José Manuel Fernandes
Costa é liberal como o
programa de Centeno, ou é da velha guarda, como quando ataca a reforma das
pensões? É o conciliador, ou o radical que recusa acordos? Sabe mesmo o que
quer, ou só quer o poder?
Vamos lá ver se nos
entendemos. Primeiro: a não ser que ocorra uma grande surpresa que nem as
sondagens, nem o “sentimento da rua” antevêem, nem o PS nem a coligação vão
obter a maioria absoluta que lhes permitiria governar com estabilidade.
Segundo: apesar do “empate técnico” das sondagens, o PS ainda é o favorito,
pois será mesmo surpreendente que os portugueses, depois de tantos sacrifícios,
reelejam a mesma maioria e o mesmo primeiro-ministro. Terceiro: o problema, o
grande problema do país não é a austeridade (que vai sendo aliviada pouco a
pouco), mas a necessidade de reformas que, mais do que prometer riquezas,
garantam sustentabilidade a um modo de vida que, olhando para o resto do mundo,
continua a ser confortável. Uma dessas reformas é a da segurança social, até o
PS o reconhece.
Dito isto, atentem nesta
passagem da lei que está em vigor, aprovada por um governo PS de que até fazia
parte António Costa: “A lei pode ainda prever (…) a aplicação de limites
superiores aos valores considerados como base de incidência contributiva ou a
redução das taxas contributivas dos regimes gerais, tendo em vista nomeadamente
o reforço das poupanças dos trabalhadores geridas em regime financeiro de
capitalização.” Para quem não entenda à primeira, o que aqui está previsto é a
possibilidade daquilo a que nesta campanha eleitoral se tem chamado
“plafonamento horizontal” e está no programa da coligação. O artigo é o 58º da
lei de 2007, onde este princípio é aceite mesmo que colocando algumas condições
à concretização do que se designa por “limites contributivos”.
Mas há mais. Dez anos antes,
era primeiro-ministro António Guterres de um Governo que também integrava
Costa, e uma célebre Comissão do Livro Branco da Segurança Social suscitou o
mesmo princípio, que nessa época até recolheria o apoio de Correia de Campos,
alguém que foi logo acusado de ser “ultra-liberal”. Não encontrei registo de
que Costa tivesse então tomado posição nessa polémica que tinha como figura de proa,
do outro lado da barricada, o inevitável Boaventura Sousa Santos. Encontrei sim
a factualidade da gestão política deste tema: como se aproximavam eleições
autárquicas, o Livro Branco foi para a gaveta. Estávamos em 1997 mas o
“pântano” que levaria, em 2001, à demissão de Guterres já dava sinais de vida.
Hoje todos os que ouviram os
debates entre Passos e Costa, ou vão seguindo a sua campanha pelas ruas,
mercados e polidesportivos deste país, conhecem o discurso do líder do PS:
qualquer regime de capitalização é equivalente a “correr o risco de acontecer
as pensões dos reformados o mesmo que sucedeu aos lesados do BES”.
Não querendo, por agora,
retomar a discussão sobre o futuro do sistema de pensões, sirvo-me deste
exemplo para sublinhar que, mesmo estando António Costa em campanha há mais de
um ano (pois começou por desafiar e derrubar António José Seguro), o seu
pensamento escapa-me. Não sei mesmo se também não escapa ao próprio, tal foi a
sua atrapalhação sobre o corte de mil milhões de euros nos regimes não
contributivos da segurança social.
Não há dúvida que a equipa que
fez o seu programa previu esse corte – Mário Centeno disse-o claramente em
recente entrevista ao Expresso –, tal como já não restam dúvidas de que não
saberemos daqui até 4 de Outubro como é que ele se concretizará ou como é que
foi calculado. Isso não acontecerá por uma razão simples: o PS sabe que tinha
de mostrar contas para dar credibilidade às suas promessas, e por isso escolheu
um grupo de académicos para produzirem as necessárias folhas de excel; mas o PS
também sabe que não há milagres e, portanto, que também ele, se chegar ao
governo, terá de fazer cortes. Cortes que, diga-se de passagem e pelo que se
pode adivinhar sobre o sentido desta medida, até serão comedidos e justos. Mais
do que isso: serão cortes necessários. Só que, não deixando de ser “cortes”,
contrariam a ficção de que com um novo executivo socialista se “virará a página
da austeridade”. E contrariam uma campanha que, à solta na estrada, começa a
multiplicar promessas conforma as audiências, da introdução de portagens mais
baixas à redução das taxas moderadoras do SNS, passando por colocar mais
enfermeiros e médicos no interior.
De resto, falo na ficção de
“virar a página da austeridade” porque nem as agências de rating acreditam
nela. Ainda sexta-feira a Standard and Poor’s subiu ligeiramente o rating da
dívida da República e fê-lo prevendo “uma continuidade global no que diz
respeito às políticas [que têm sido seguidas], independentemente do resultado
das eleições que se avizinham”. Ou seja, a S&P acha que nada de essencial
mudará mesmo que o PS ganhe as eleições.
Ora é chegado a este ponto que
não se hei-de ter pena de António Costa ou dos portugueses. Se ter pena de ele
estar enganado sobre o que vai fazer ou pena de estar a enganar os eleitores
sobre o que pode realmente vir a fazer.
Ou seja, tenho pena de António
Costa por se alimentar de uma ilusão, por acreditar que vai mesmo fazer o que
promete, por não ter aprendido nada com as experiências de Hollande, de Renzi,
até de Tsipras. Ou melhor: aprendeu a dissimular, escondeu-se atrás de um grupo
de economistas, não entendeu sequer que o seu programa também tinha cortes, e
anda por aí a criar falsas expectativas. Fá-lo, é certo, com mais manha, pois
não dá números, nem sequer avança garantias. Procura não ser apanhado na
primeira esquina, mas parece acreditar mesmo que vai ser ele a encontrar aquilo
de que o centro-esquerda anda à procura há duas décadas sem grande sucesso: uma
política realmente alternativa, um sonho idealmente “socialista” numa Europa
que está a ter dificuldades em lidar com a globalização e onde o problema é
sustentar o Estado Social, não prometer mais Estado Social.
Pena ainda de António Costa
por não ser possível acreditar na sua sinceridade. Quem é ele afinal? O
político de esquerda que é também liberal, como liberais são algumas das
propostas de Centeno? Ou o homem que quer ser eleito sem acreditar no que
propõe? O demagogo que vimos, por exemplo, a utilizar argumentos próprios do
Bloco de Esquerda para atacar o plafonamento? Ou o político pragmático mais
interessado no que funciona do que na ideologia? O conciliador, como gosta de
ser retratado, ou o radical que rejeita qualquer compromisso, como voltou a
fazer este fim-de-semana?
Talvez tudo isto não seja mais
do que resultado da obsessão de agradar a gregos e troianos – neste caso, aos
eleitores titubeantes do centro, receosos do regresso do velho PS, e aos
eleitores mais radicais da esquerda, os que hesitam entre votar útil no PS ou votar
com o coração num Livre ou num BE.
Não é possível manter
eternamente este equilibrismo, e aí que começo a ter pena do povo português.
Não pelo que possa decidir a 4 de Outubro, mas pelo que pode via a descobrir a
5 de Outubro. Se o PS ganhar, vai governar com quem? Não sabemos. Se o PS perder,
vai deixar que outros governem? Parece que prefere o caos. E será o PS capaz de
nos dizer mais alguma coisa sobre a governabilidade até irmos às urnas? Cada
dia que passa duvido mais que isso aconteça.
É provável que, do interior de
uma arrogância de que só agora vimos alguns sinais, como no trato com os
jornalistas “impertinentes”, António Costa ache que pode consertar tudo o que
andou a escavacar durante esta campanha eleitoral (como pensa que já consertou
tudo o que, há um ano, escavacou no interior do PS). Talvez até pense que é só
uma questão de habilidade, algo ao alcance do seu talento natural. Engana-se,
porque o país não é a câmara de Lisboa – nunca foi.
E a tragédia do seu engano é
também a nossa tragédia e a deste pobre povo. A tragédia do dia seguinte. A de
5 de Outubro.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
22-9-2015
Relacionado:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-