Maria João Avillez
Ouvindo, perguntando, lendo e observando, julgo não me
enganar totalmente se disser que a chave para desemperrar esta pesada porta só
pode estar nas mãos do vice-presidente do Brasil, Michel Temer.
1. Passam os dias e as horas,
sucedem-se factos, ocorrências, episódios, mas o nível da imprevisibilidade não
desce como nas águas teimosas. Por detrás do carrossel dos acontecimentos, o
que sobe é a radicalização, hoje de grau bem superior de há semanas atrás.
O espectáculo, malsão, passou
aliás de triste a perigoso: de um lado, o povo apelando a juízes e tribunais;
do outro, uma classe politica dividida, enfraquecida e aparentemente incapaz de
qualquer bem vindo volte face. Um sistema polarizado num PT ressentido e
pendurado no resto: no PMDB, (ainda no Governo), no PSDB e numa constelação de
partidos com menor relevância. Integrando uns a periclitante aliança governamental
e outros, ancorados no campo oposicionista.
Quanto valem uns e outros? Não
se sabe. José Serra, politico de topo do PSDB, ex governador de S.Paulo e ex
candidato a Presidência da Republica contra Lula, alertava ontem o país contra
a “ilusão” de se pensar que o Brasil “estava dividido ao meio”.
Serra fazia outras contas. E
orçamentava a divisão entre um quarto de tropas fiéis ao PT e três quartos de
brasileiros rejeitando audivelmente o Partido dos Trabalhadores e o seu
ex-libris, Luís Inácio Lula da Silva. Sucede que estes números foram captados
antes das últimas peripécias, ignorando-se quanto pesa a quase indecente
entrada de Lula no governo para se libertar do juiz Sérgio Moro e se anichar na
dependência judicial do Supremo Tribunal Federal (tudo menos Moro!)
beneficiando da “prerrogativa” de que dispõem os governantes. Embora – nuance
não de somenos! – ninguém saiba entretanto se Lula é ou não é ministro de
Dilma: a polca das previdências cautelares avançadas e retiradas, ratificadas
ou recusadas, ainda não acabou de ser dançada.
Tão pouco se sabe quanto vale
politicamente a gelada ausência de uma alternativa suficientemente credível
para substituir um governo que não governa, uma liderança que não lidera,
substituir o anquilosado modelo partidário vigente e inventar outro.
E de caminho, resgatando o
Brasil da sua devastadora caminhada para o abismo (e não estou a exagerar.)
Até domingo passado, quando os
brasileiros desceram as ruas, as coisas, embora inconclusivas, eram talvez – ou
pareciam ser – mais claras.
Assim: havia um governo
inoperante e suspeito; o espectro (não passava disso) de um processo de
impeachment; um ex-presidente a ser investigado, uma grande maioria dos
brasileiros a manifestar-se contra Dilma e Lula e uma Justiça que recatadamente
investigava, no silêncio dos seus gabinetes. Quando muito havia louvores do
povo ao trabalho “dessa” Justiça e vivas ao juiz Moro, que em Curitiba conduz
as investigações da mega operação Lava Jato. Estava em marcha a
irreversibilidade da situação mas o jogo era menos misturado. Agora, não.
Já não.
2. Lula está (e não está no
governo), o impeachment arrancou mesmo, juízes e tribunais vieram a terreiro, o
juiz Moro exibiu que tem uma agenda própria.
Convicto da necessidade de
“haver escrutínio público”, Sérgio Moro decidiu publicitar o conteúdo das
escutas telefónicas a Lula. A decisão teve o imediato (e previsível) resultado
de despoletar a divisão no meio judicial, semeando a polémica entre magistrados,
promotores, juízes e adubando uma discussão que ainda balança entre uma
veemente defesa de Moro e a condenação do seu procedimento.
A doutrina divide-se.
Resumidamente:
“Ele teria que pedir ao
Supremo para divulgar, não poderia ter feito isso, não tem competência. Sérgio
Moro é competente mas com relação às pessoas sem “prerrogativa”. Deveria
encaminhar ao Supremo Tribunal Federal e a Corte decidiria se divulgaria ou não
porque o conteúdo divulgado não tem mais volta”, dizia ao Globo Gerson Carneiro,
professor de direito administrativo.
“Não”, discorda Gisela França,
professora de Direito Penal: “não precisaria da autorização do Supremo Tribunal
Federal, porque é uma interpretação de interesse nacional fazer essa
divulgação”.
Seja como for, o gesto de Moro
– não sejamos ingénuos – poderá, repito, expor a vontade de uma agenda
politica. Se parecera algo duvidoso que no domingo dia 13, ele se aventurasse a
confessar que “se sentira tocado” com o apoio recebido nos asfaltos de S. Paulo
por mais de uma milhão de pessoas, optar agora – embora obviamente com
autorização superior – pela divulgação de escutas telefónicas incendiárias, foi
outro risco, mesmo que calculado. Lula reagiu de cabeça perdida e discurso
desnorteado, negando, insultando a justiça (“há uma Suprema Corte
acovardada…”). Horas depois escreveria uma carta aberta e quase humilde, mas a
primeira impressão é que contara. Tanto que as suas afirmações levaram Celso de
Mello, juiz do Supremo Tribunal Federal a considerá-las um “insulto” por “ofenderem
gravemente a dignidade institucional do poder judiciário”. A reação de Lula,
disse este prestigiado juiz, foi “torpe e indigna, típica de mentes
autocráticas e arrogantes que não conseguem esconder, até mesmo em razão do
primarismo de seu gesto leviano e irresponsável, o temor pela prevalência do
império da lei…”. Uma declaração de guerra.
O certo é que as escutas
radiografaram um Lula que fugira até aqui ao imaginário generoso do PT,
desenhando uma temível idiossincrasia de Luís Inácio Lula da Silva.
O mítico operário que chegara
ao Palácio do Planalto, o benfeitor do povo, o herói do PT, deixava afinal
incrédulo parte do próprio PT, fornecia argumentos aos detratores, sufocava o
Brasil com a sua despudorada indignidade. Num ápice, os adversários políticos
pegaram na arma mais eficaz que tinham à mão e olearam o impeachent. Começou
sexta-feira de manhã na câmara dos deputados, Dilma tem dez sessões para se
defender. Conforme se ironizava esta manhã no parlamento, “nunca se vira tanto
deputado às sextas-feiras em Brasília!”… E tal como de resto aqui previ há
dias, abriu logo a caça ao voto: quer a actual Presidente, quer o
ex-presidente, agiram de imediato contra esta operação, numa mobilização que
contém muito mais de desespero que de ilusão. Ao mesmo tempo que dia 18 o PT
encenou uma desforra nas ruas. Lula foi com eles. A bandeira era a luta contra
o impeachement, a ordem era para insuflar fôlego em fiéis e em tropas. E como o
dia fora reservado com antecedência pelo PT, o governo do Estado mandou evacuar
os “outros” manifestantes que insistiam em gritar contra Dilma: a rua hoje não
era deles.
Não basta porém dizer que nada
é já como dantes. Nem lembrar que apesar de Lula ter feito da sua tomada de
posse um comício do PT e de ter levado o seu partido para dentro do Palácio
como se fosse ele e não Dilma quem (oficialmente, pelo menos) o habita, as
coisas não são o que já foram. Ou que pese o ter havido uma ininterrupta e
muito meticulosa ocupação do aparelho do Estado e da administração pública –
tratados um e outra pelo PT como coisa própria – o motor da credibilidade
gripou irreversivelmente.
Falta viço e sobretudo
verosimilhança. Mesmo que logo se apure que as ruas estiveram cheias do PT
(cheias de qual possibilidade real de esperança?) há uma telenovela feia de
mais nos ecrãs do país, enquanto o Brasil se desfaz.
3. Será que me vou atrever –
perguntarão – pelo quarto texto consecutivo, a ser inconclusiva? Não. Ouvindo,
perguntando, lendo e observando – a política tem horror do vazio –, julgo não
me enganar totalmente se disser que a chave para desemperrar esta pesada porta
só pode estar nas mãos do vice-presidente Michel Temer. É o que resta.
O presidente do PMDB – que
ainda integra a base governamental do governo Dilma Roussef –, um conhecido
professor de Direito que em breve estará em Lisboa, tem gerido com alto cuidado
político este circo deprimente. Está onde deve estar, evita confundir-se com os
estragos alheios, vai conversando com as oposições (PSDB) conforme aqui também
referi há dias. Não está (até à data…) machucado por suspeitas de corrupção,
nem ensombrado pelo passado. O Brasil parece olhá-lo com um olhar limpo. Temer
terá aliás começado o processo de descolagem do Governo e isto, por três razões
que convém deixar aqui: não foi à posse de Lula, (nem ele, nem Renan Calheiros,
dirigente de vulto do partido e presidente do Senado) no que não pode deixar de
ter o significado político que tem: o PMDB está “desembarcando” do Executivo; é
muito natural que venha a ocorrer a expulsão do ministro que à revelia da
direção “pmedebista” tomou posse ao lado de Lula no “novo” governo de Dilma. E
finalmente, foi anunciada a antecipação da reunião do Directório do PMDB –
anteriormente prevista para daqui a um mês – que vai decidir pela ruptura.
Desembarque à vista, portanto.
4. Já compreenderam: não
consigo desatarraxar-me do Brasil. Noutra encarnação andei por lá certamente.
Por isso relembro a frase de uma amiga brasileira com quem almocei há duas
semanas no “Málaga”, inesquecível tasca na “centro” do Rio de Janeiro. Quando
lhe perguntei que queria beber, foi sábia: “alguma coisa que me atarante…”
Tinha razão: só “atarantado”
se segue esta telenovela.
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