Para autor de trilha sonora de
novela escrita por autor que odeia “história de bicha”, os protestos contra o
governo têm viés reacionário. Por que Caetano não canta ou cala a boca?
Reinaldo Azevedo
Caetano Veloso é um cretino e
irresponsável. Acha que pode usar a sua condição de artista para difamar
pessoas e movimentos. Se fosse um historiador, seria também um mentiroso.
Ele gravou o programa “Altas
Horas”, da Globo, que vai ao no dia 26. Segundo informam o Estadão e o G1,
comparou a maior manifestação da história do país, ocorrida no domingo, dia 13,
em favor do impeachment de Dilma, com a “Marcha da Família com Deus pela
Liberdade”, uma série de manifestações havidas no país em favor da queda de
João Goulart entre 19 de março e 8 de junho de 1964.
Disse o cantor:
“A manifestação de domingo,
para mim, não foi suficientemente diferente da passeata da Família com Deus
[pela Liberdade], que apoiou o golpe de 64”.
Se é assim, ou Caetano não
entendeu as marchas de 1964 ou não entende as de 2016. Talvez as duas coisas.
Não tem jeito: ao bom compositor cabe a pecha que lhe pespegou José Guilherme
Merquior: “subintelectual do miolo mole”. Ele próprio acabou adotando a
designação, tentando lhe emprestar algo de charmoso. Não há charme nenhum. Um
subintelectual do miolo mole costuma dizer asnices. Como Caetano.
As marchas de 1964 pediam
golpe de estado; a manifestação do dia 13 e as três que a antecederam, em 2015,
repudiam todas as formas de golpe: tanto o militar como o dado com o auxílio
das urnas.
As marchas de 1964 viam no
Brasil a ameaça da comunização; os atos de agora se opõem à cleptocracia e às
agressões ao estado de direito.
As marchas de 1964, como o
nome indica, tinham um forte caráter religioso, de cunho reacionário; os atos
de agora são absolutamente laicos e, ao contrário do que se deu há 52 anos,
contam com uma nada discreta antipatia de amplos setores da Igreja Católica.
As marchas de 1964 queriam
depor Goulart porque ele era quem era e pediam a intervenção militar; as
manifestações de agora cobram a saída de Dilma porque ela cometeu crime de
responsabilidade. E entendem que a tarefa cabe ao Congresso — no caso de
impeachment — ou ao TSE.
O único paralelo que Caetano
ou qualquer outro podem fazer, desde que não lhes sobre má-fé, é com os atos de
1992 em favor do impeachment de Collor. Sim, há uma diferença: naquele caso, as
esquerdas queriam a queda do presidente de turno; em 2016, elas são
beneficiárias da regime de roubalheira e se mobilizam contra o impeachment.
Caetano Veloso tem o direito
de ser contrário ao impeachment. Mas não lhe reconheço o direito de mentir
sobre o caráter das manifestações de rua. O programa foi gravado, diga-se, na
quarta-feira em que Dilma deu posse a Lula no Ministério da Casa Civil — no que
pode ser chamado, sem favor, de “golpe de estado” — e em que vieram a público
as gravações que evidenciam uma tramoia para melar a Lava Jato.
Ainda falando sobre a
manifestação de domingo, afirmou: “Não reconheci nela a Passeata dos Cem Mil,
da qual participamos”.
Nem tinha mesmo de reconhecer.
Eventos históricos não se repetem, nem como farsa. Eu também não reconheci,
felizmente! E é constrangedor ter de desmontar associação de ideias tão
primária.
A Passeata dos Cem Mil, em
1968, se fez contra a ditadura militar. No Brasil, hoje, há um regime
democrático. A Passeata dos Cem Mil tinha na linha de frente artistas
estrelados, no que não deixou de ser uma prova de coragem, louve-se. Os
protestos pela queda de Dilma têm na vanguarda gente comum, que não é notícia,
embora, obviamente, estejam abertos a todos, inclusive aos artistas. A Passeata
dos Cem Mil tinha uma inspiração de esquerda, que estava banida do debate
público. Os protestos pró-impeachment de 2016, de fato, esquerdistas não são
porque estão justamente combatendo as safadezas que os companheiros fizeram no
poder.
Caetano tentou teorizar:
“A gente participou de um
movimento para uma possível volta da democracia. Grande parte da esquerda
também não gostava do que a gente fazia”.
Não fica claro de que “a
gente” exatamente ele está falando, mas suponho que se refira ao Tropicalismo,
movimento artístico que ajudou a criar e que, de fato, contava com a
hostilidade de parte considerável da esquerda ortodoxa, excessivamente
nacionalista e antiamericana nas questões culturais. Os tropicalistas eram
vistos como uma espécie de subproduto do imperialismo.
Não é a primeira vez que
Caetano abusa do fato de ter sido hostilizado pela esquerda no passado para lhe
puxar o saco no presente e atacar seus adversários, como se a sua condição de
antigo alvo dos esquerdistas lhe conferisse especial competência para
absolvê-los no presente e para condenar seus opositores.
Isso é de uma desonestidade
intelectual sem-par.
E ele foi adiante na
impostura. Acrescentou:
“Os acontecimentos estão se
atropelando. Precisamos ter calma para olhar os acontecimentos. Não temos uma
ditadura, mas o Brasil é um país desumanamente desigual, e toda movimentação no
sentido dessa tentativa de diminuir a desigualdade enfrenta a oposição da
elite”.
O pensamento é um lixo,
incluindo esse emprego vigarista da palavra “elite”, o que denota uma
ignorância que imaginei já superada no seu caso.
Caetano sugere, obviamente,
que o que há no Brasil é uma reação à “tentativa de diminuir a desigualdade”.
Repete a pior parte do discurso petista. O PT venceu quatro eleições
presidenciais consecutivas. Quando houve críticas aos programas ditos sociais
que foram implementados, o que se atacou foi a ineficiência, não o benefício em
si.
Quem fala demais dá “bom dia”
a cavalo. Enquanto ele dizia suas asneiras no programa “Altas Horas”, as
edificantes conversas de Lula e Dilma vinham a público, e ficava claro, então,
quem estava e está tentando golpear as instituições. Neste sábado, veio um
arremate: a entrevista de Delcídio do Amaral à VEJA evidencia quem são e onde
estão os bandidos.
“Velho Chico”
Ah, sim: o cantante foi ao
programa da Globo para falar da novela “Velho Chico”, de que ele faz a trilha
sonora. O autor da novela, Benedito Ruy Barbosa, é aquele que odeia “história
de bicha”. E ele se orgulha: “Tenho dez netos, quatro bisnetos e tenho um puta
orgulho porque são tudo macho pra cacete”.
Esse pensamento, com absoluta
certeza, seria abrigado pelas marchas de 1964, mas não cabe nas manifestações
de 2016.
Caetano faz a trilha sonora.
Não seja desonesto, sujeito!
PS: Caetano gosta de responder
às críticas que lhe faço. Mande brasa! Se quiser, topo debate público, sem
claque. Com a autoridade com que falou, talvez ele saiba de coisa que não
saibamos. Está feito o convite.
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