terça-feira, 21 de março de 2017

O silêncio dos culpados

É função da imprensa expor o que sobra à casta que tomou o Estado e falta aos miseráveis

Fernão Lara Mesquita

Esta quarta-feira, 15 (de março), foi daqueles dias em que os fatos se impuseram à “narrativa” do Brasil com uma contundência de doer. Capital por capital, cidadezinha por cidadezinha, giro após giro das TVs pelo País, a mesma cena: grupelhos de funcionários públicos estáveis no emprego, com aposentadorias integrais e aumentos de salário garantidos até 2020 barrando a passagem das multidões de desempregados, subempregados e empregados com empregos ameaçados (todos menos os públicos) e aposentadorias de fome (todas menos as públicas), que esperavam passivamente nas estações e nos engarrafamentos gigantes que os “donos do Brasil” em “greve geral” contra as reformas da Previdência e trabalhista lhes concedessem a graça de seguir na luta pela sobrevivência.

São Paulo, 15-3-2017, foto: Ricardo Stuckert/Divulgação
Um retrato doloroso, mas fiel, da nossa realidade.

Esse Brasil órfão, sem voz, abandonado à própria sorte, impedido de trabalhar, está morrendo de overdose de funcionalismo, de supersalários e, mais especialmente, de acúmulo de aposentadorias e superaposentadorias precoces. Pouco mais de 980 mil aposentados da União geram um déficit maior na Previdência que o resto dos 32 milhões de aposentados do setor privado somados. Não se sabe a quanto os 26 Estados e 5.570 municípios, com seus respectivos Executivos, Legislativos e Judiciários, empurrarão essa conta (“sem contrapartidas”!), mas somente a folha da União vai subir este ano dos R$ 258 bilhões que custou em 2016 para R$ 283 bilhões. São quase 10% a mais e como o Orçamento cresceu só 7%, isso significa que, no mesmo momento em que estão arrancando cateteres de quimioterapia das veias de doentes com câncer e abandonando-os para morrer no hospital público de referência em oncologia do Rio de Janeiro por “falta de recursos” (imagine nos “grotões”!), mais e mais dinheiro dos impostos que esses doentes pagaram é desviado das atividades-fim para os bolsos dos eternamente imunes às crises que fabricam.

Se todos os moderadíssimos cortes de despesas propostos pudessem ser executados, o governo Temer prometia aos miseráveis do Brasil que chegariam ao fim de 2017 com um acrescentamento à dívida que o Estado lhes atira anualmente às costas de “apenas” R$ 140 bilhões por cima dos R$ 2,81 trilhões a que o total já chegou. Mas os últimos “direitos adquiridos” pela casta dos “grevistas” de quarta-feira vão custar mais que isso e o governo já está desistindo de buscar a diferença com reformas, mesmo as que mantêm intacta a escandalosa desigualdade que há hoje nas contas da Previdência. Novos impostos já estão prontos para ser disparados.

Está passando da hora, portanto, de darmos uma “freada de arrumação”. As emoções da Lava Jato são vertiginosas e a delícia de ver ladrões de casaca perderem o sono uma vez na vida não tem preço. Mas esquecer o cérebro no meio do caminho é catastrófico. O primeiro ponto é manter em mente que corrupção não é mais que déficit de democracia. E democracia é controle do Estado pelo povo, e não o contrário. “O pior sistema que existe excluídos todos os outros”, como dizia Winston Churchill. A rápida evolução dessa burrada do “financiamento público” de campanhas para o seu corolário obrigatório que é a “lista fechada” é mais uma prova disso. Cassa o seu direito ao voto. O outro ponto essencial é dar a cada coisa o seu devido peso. A Lava Jato é imprescindível. Mas fingir que só ela basta para nos tirar da rota de desastre é nada menos que suicídio. Quanto é que se rouba do Brasil por fora da lei? Via Odebrecht, a rainha do nosso cupinzeiro, foram R$ 10 bilhões a R$ 12 bilhões em cerca de dez anos, diz a polícia. Mas sejamos realisticamente generosos. Multipliquemos esse valor por 10, por 20 vezes. Se tudo parar rigorosamente onde já chegou; se nenhuma obra mais pagar “pedágio”, funcionário inútil for contratado ou “direito” novo for “adquirido”, estaremos todos mortos e enterrados, mais nossos filhos e netos, antes que o completo cessamento da roubalheira “por fora” zere a conta do que nos arrancam todo santo mês “por dentro” com a vasta coleção de leis que só valem para “eles”.

A discussão do que realmente decide o nosso destino, portanto nem começou. Desde o apeamento do PT do poder, só o que não depende do Brasil nos tem dado sobrevida: a saúde da economia americana, os soluços da China e das commodities, os capitais que se aventuram por juros maiores que zero. O governo Temer tem vivido de expedientes; só lhe foi dado mexer naquilo que é possível mexer sem mexer no que é preciso mexer para o Brasil voltar a respirar: repatriações de dinheiros fugidos, manipulações do câmbio e dos juros, “ajustes” de estatais arrombadas pelo incentivo à aposentadoria, raspagens de fundos de cofres do tipo FGTS para lembrar aos moribundos como é estar vivo...

A mansa passividade das multidões detidas pelas barricadas da “greve geral” de quarta-feira, estando em causa questão tão explosiva quanto é a aposentadoria em toda a parte do mundo, dá, no entanto, a medida dos sacrifícios que esse Brasil enjeitado e sem voz estaria disposto a aceitar se lhe acenassem com a menor contrapartida. Mas a função de expor, de medir, de comparar o que falta aos miseráveis com o que obscenamente sobra à casta que se apropriou do Estado não é do presidente da República, muito menos de um acidental e periclitante como o nosso que sofre represálias cada vez que ousa mover o nariz na direção do quadrante de onde vem o mau cheiro. Essa função é SEMPRE da imprensa.

Se não houvesse nenhum sinal de que tudo está derretendo de podre no reino dessa nossa “dinamarca” lá de cima já seria inaceitável que ela não fosse fuçar esse departamento dia sim, dia não. Mas no estado de arrebentação em que vai um país onde os pilotos e aviões da força aérea nacional estão oficialmente reduzidos à condição de choferes de marajás, as “assessorias” são do tamanho de governos democráticos inteiros e os salários e mordomias do Poder Judiciário competem com os dos tubarões de Wall Street esse silêncio é indecente. 
Título e Texto: Fernão Lara Mesquita é jornalista, escreve em www.vespeiro.com, Estado de S. Paulo, 21-3-2017

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