Aparecido Raimundo de Souza
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Durante meses, Panetôncio
frequentou um consultório psiquiátrico com a reclamação de que havia um imenso
jacaré debaixo de sua cama.
— E toda noite ele me mostra
uma boca cheia de dentes...
— Não são dentes, são presas.
E não se diz “boca”. Jacarés não têm boca, e sim mandíbulas.
— Não importa, doutor, o caso
é que não aguento mais.
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O médico tentava persuadir o
paciente de todas as formas possíveis:
— Panetôncio, você não reside
num prédio de apartamentos em plena Barra da Tijuca com segurança, circuito
interno de televisão e alarmes por todos os cantos?
— Perfeito, mas o jacaré me
amedronta apesar de toda essa tecnologia de ponta.
— Não existe nenhum jacaré.
— Claro que existe, doutor. E
a cada dia parece mais furioso.
— Só na sua imaginação.
— Não é imaginação, doutor, é
real.
— Sua esposa viu esse suposto
jacaré?
— Não.
— Nem seus filhos?...
— É verdade!
— Seu sogro chegou a dormir
uma noite no quarto e também nada viu, ou ouviu?
— Meu sogro dorme mais do que
a cama. É só recostar a cabeça e no minuto seguinte está contando carneirinhos.
— Sua sogra?
— Uma besta quadrada. Não
enxerga um palmo adiante do nariz. A única coisa que sabe fazer, e cá entre
nós, muito bem, é ver defeitos em mim e maquinar intrigas do arco da velha com
minha mulher.
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— Seu irmão dormiu lá com a
esposa dele, na semana passada, não dormiu?
— Dormiu.
— E não viu nem ouviu
absolutamente nada?
— Meu irmão, doutor, só pensa
naquilo vinte e quatro horas por dia. Não tem uma noite que deixe a mulher
descansar em paz. Esteja em casa ou na casa dos outros, o negócio dele é
furunfar. Nem os dias sagrados da companheira -, o senhor compreende -, aqueles
do famoso “lacinho vermelho”, ele respeita.
— Fazer amor faz um bem danado
à saúde, Panetôncio. Alivia o estresse do dia a dia. A alma se liberta das
tensões e fica mais leve e solta. Concorda?
— Concordo, doutor, concordo
plenamente. Mas o senhor precisa entender o seguinte: balançando o esqueleto,
ele não vai ver nada, como, aliás, não viu. E o jacaré continua embaixo da
minha cama, tranquilo, sem problemas, me enchendo o raio do saco.
— Insisto, Panetôncio, que não
há nenhum jacaré debaixo da sua cama. Volte para seu quarto e procure ficar em
paz. Sua esposa, da última vez que falou comigo, reclamou que, por causa desse
bendito jacaré, você não só mudou de quarto, como abandonou a cama. Esse
negócio está me cheirando a outra coisa...
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— Que outra coisa, doutor?
— Amante. Você arranjou uma
namoradinha e está engabelando dona Lílian com essa história sem pé nem cabeça.
— Não trairia minha
cara-metade por nada deste mundo. Ainda que encontrasse a Bruna Lombardi
peladinha, dos pés à cabeça.
— Escute o que vou dizer: sua
esposa, com essa conversa toda, está abalada. Muito abalada. Sem contar que
também está necessitada. Mulher necessitada é perigosa. Começa a subir pelas
paredes, a se masturbar com cotoco de vela, embalagem de Neutrox. Se você não
dá conta, não comparece...
— Sei disso tudo, doutor. Mas
como posso me concentrar?
— Você pode. Você é um homem
ou é um rato?
— Depois que o jacaré apareceu comecei a ter
dúvidas sobre minha masculinidade. Acho que sou um coelho assustado. E coelho
tem medo de jacaré. Li algo a respeito numa revista especializada em animais.
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O doutor seguia na sua linha
de conduta e perseverava com acirrada veemência na ânsia de demover a ideia
fixa da cabeça de seu paciente.
— O jacaré, Panetôncio, ou
melhor, esse famigerado jacaré é apenas uma alucinação passageira, fruto da sua
estafa, da sua debilidade. Resumindo, meu amigo, coisa provocada pelo excesso
de trabalho e pela fadiga. Você tem se desgastado muito, ultimamente. Sua
ocupação, na Bolsa de Valores -, compreendo -, é muito pesada e irritante.
Deixa os nervos à flor da pele, a cabeça a mil, os neurônios em frangalhos. Sei
que não é fácil passar o dia inteiro com três telefones no ouvido...
— Quatro, doutor, quatro.
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— Que seja! Três, quatro ou
apenas um, não importa. O que conta, o que faz diferença, é você estar o tempo
todo gritando, berrando e gesticulando feito um desmiolado e despirocado da
cabeça. Preste atenção no conselho que vou lhe dar, e vou fazê-lo como seu
amigo, não como médico. Tire uns dias e saia com a família em férias. Coloquei,
inclusive, meu sítio, em Pedra de Guaratiba, à sua disposição. Está lembrado?
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— Estou doutor. Mas o jacaré
está cada vez mais esfomeado. Se o senhor, que é um especialista, que estudou
anos a fio para procurar dar uma solução plausível para o meu caso e, no final
das contas, não puder, ou não conseguir me ajudar, quem poderá me levar à cura
dessa merda, ou à merda dessa cura?!
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O rapaz continuou a
frequentar, ainda por um bom tempo, as seções no consultório, como sempre fazia
todas as quartas-feiras, na parte da tarde. Com isso, o médico estava quase
convencendo a criatura de que tudo não passava, realmente, de fantasias e
devaneios oriundos de um desgaste físico e mental acima da linha do ponderável,
e que, em decorrência disso, se levasse os próximos encontros mais a sério,
logo sairia completamente restabelecido.
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Entretanto, por três
quartas-feiras seguidas, Panetôncio não compareceu ao consultório, nem
comunicou à secretária o motivo de sua ausência. Apreensivo e visivelmente
preocupado, o psiquiatra ligou para a residência de seu cliente.
— Gostaria de falar com seu
Panetôncio — disse o doutor à mulher com a voz chorosa que o atendeu.
— O Pane morreu... quero
dizer, o Panetôncio faleceu ... — respondeu a pessoa, em soluços.
— Com quem falo, por
gentileza?
— Lílian, a esposa.
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— Dona Lílian, sou eu, o
médico psiquiatra do seu marido.
— Doutor, desculpe não o ter
avisado antes. Sabe como são essas coisas. Uma correria: liberar corpo no IML,
correr atrás de funerária, avisar todos os parentes e amigos, cuidar do
enterro, fretar ônibus, comprar flores, coroas, escolher cemitério, ver jazigo,
colocar anúncio em obituário de jornal, marcar com antecedência a missa de
sétimo dia, uma loucura!
— Estou pasmo, dona Lílian.
Fiquei realmente sem saber o que lhe dizer...
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— Pois é. O senhor que é
médico ficou assim, assombrado, praticamente sem saída. Imagina como estamos
nós que convivíamos diariamente com ele. E todo o resto da família. Completam
sete dias, amanhã. A propósito, gostaria que o senhor viesse para a missa. Vai
ser na Igreja de Nossa Senhora das Cabeças, na Rua Belizário Pena, ali na
Penha. Escolhemos essa paróquia porque o padre atual, meu cunhado, é o irmão
dele.
— Farei o possível. De
qualquer forma, minhas sinceras condolências.
— Obrigada, doutor. Obrigada
por tudo, pelo seu carinho, pela sua atenção.
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— Nada a agradecer, senhora.
Não via Panetôncio só como meu paciente. Tinha nele um amigo. Não querendo ser
chato ou inoportuno, esclareça uma dúvida, dona Lílian. Como ele não veio ao
meu consultório por três quartas-feiras seguidas e agora a senhora me dá essa
notícia assim, na bucha, sem eu estar preparado, do passamento dele, juro por
tudo quanto é mais sagrado, fiquei sem chão.
Dessa forma, quero mais uma vez deixar meus pêsames sinceros à senhora e
aos demais familiares. Só mata uma curiosidade que está me incomodando.
Panetôncio morreu... morreu de quê?!
— Foi devorado por um jacaré
que estava escondido debaixo da cama dentro do nosso próprio quarto.
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(COMO OS DEMAIS QUE FOREM PRODUZIDOS), SERÁ PANFLETADO E DISTRIBUÍDO NAS
SINALEIRAS, ALÉM DE INCLUÍ-LO EM NOSSO PRÓXIMO LIVRO “LINHAS MALDITAS” VOLUME
3.
Título
e texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. Do
Sítio ”Shangri-La” – Um lugar perdido no meio do nada. 23-3-2017
Colunas anteriores:
CANSEI, NÃO CONSIGO LER MAIS.
ResponderExcluirSÃO REALMENTE PALAVRAS PERDIDAS NO MEIO DO NADA.
As anedotas inteligentes são as curtas...
fui... e não volto mais...
VOLTE, AMADO. EMBORA AS PALAVRAS ESTEJAM PERDIDAS NO MEIO DO NADA, SEMPRE HÁ UM CAMINHO ONDE ENCONTRA-LAS.
ResponderExcluirDessa forma, vá, mas volte. O retorno sempre é uma chegada esperada.
Abraços
Aparecido
Veja bem, é a minha opinião. Há alguns poucos meses atrás, comentei que os textos eram muito longos e poderiam ser mais sucintos. Digo mais, estes textos muito frequentes e longos, perdem o interesse, sou sincero, não os tenho lido. O que acontece, não rasgo o verbo, rasgo o texto. Entendam como "crítica construtiva"!
ResponderExcluirAbs
Heitor Volkart