terça-feira, 21 de março de 2017

[Aparecido rasga o verbo] Os gritos no silêncio

Aparecido Raimundo de Souza

UM
Outro dia me hospedei num hotelzinho do interior, onde participei de uma cena inimitável, hilariante, diferente, com certa pitada de humor, mas, ao mesmo tempo, de embaraço, vexação e constrangimento. O porteiro me alojou junto com meus bagulhos no único buraco vago existente, já que os outros apartamentos estavam ocupados. Como as horas beiravam as duas da manhã, o mais sensato foi me conformar com aquelas quatro paredes nojosas, cheias de mofo e de teias de aranha. Isso sem falar da velha cama de solteiro barulhenta e ruidosa, fedendo a mijo, com o lençol ensebado e gorduroso e o travesseiro sem fronha.

DOIS
Para completar a má sorte, um aparelho de televisão do tempo do ronca, gerando chuviscos em parceria com imagens distorcidas e fantasmagóricas. Mas isso não era, ou melhor, não foi tudo. O bicho pegou para valer vinte minutos depois. Já me acomodara entre o cansaço e a vontade de dormir, preso àquele marasmo enfadonho, contando bichanos na gateira, à espera do sono que em vão tentava conciliar. No aposento contíguo, alguém começou a gemer. Seria um doente? Inicialmente, só se distinguia algo parecido com hum... hum... hum... hum... hum...
Esses sons aumentavam de intensidade gradativamente. Às vezes, se tornavam nítidos demais; noutras diminuíam, até não se ouvir absolutamente nada. Logo em seguida, recomeçavam, se prolongavam e, estranhamente, ficavam repetitivos. Que chateza!
— Hum... hum... hum... hum... hum...

TRÊS
De repente, uma voz feminina e melodiosa irrompeu em meio a toda aquela confusão de rumores, como se alguém estivesse na iminência de explodir para um gozo incontrolável e prazeroso.
— Vamos, amor! Assim, assim... vai... vai... ai... ai... assim! vai... vai... mais fundo, assim, ai... aiiiiiiii...
Evidentemente, se tratava de um casal fazendo amor. Não havia mais dúvidas. O interessante é que só a mulher manifestava a tensão pela qual passava, abrindo a boca e soltando palavras voluptuosas e cheias de deleites sensuais.

Imaginei, em delírio, a fêmea alucinada, cavalgando, desatinada, o macho firme e ereto, naquela posição extravagante e insensata, que somente em ocasiões de pura loucura e desatino se consegue inventar.

Todavia, o que me deixava prostrado e boquiaberto, meditativo e intrigado, era o sujeito. Ele não falava. Geralmente, nessas horas do rala-e-rola, por mais fechado, ou por mais inibido que alguém possa ser, sempre há o desprendimento, o devotamento e a abnegação, à medida em que um vai conhecendo o outro, seja na troca das carícias seja nos afagos e mimos, ou nas lisonjas e branduras. Mas o cidadão não saía do hum... hum... hum... hum... hum..., como uma agulha empacada em cima de um disco de vinil arranhado e, nessa confusão, só me chegava aos ouvidos a voz da vedete que, naturalmente levada pelo apogeu do prazer da penetração, quebrava o silêncio terno da madrugada longa e fria.

QUATRO
Nervoso, e comendo as unhas, arrisquei abrir um pouquinho a porta de madeira, bem lentamente, para não ranger as dobradiças e ver se, do corredor, distinguia algo que revelasse o segredo. Contudo, ao tentar meter o bedelho, percebi que outros albergados faziam o mesmo, olhando cada qual para um lado e todos para lugar nenhum, escudados pelas frestas das portas entreabertas. Com cuidado, voltei à postura de antes. Nessas alturas, o rebuliço doidejava longe.
— Vou explodir — gritava eufórica, a estrela de toda a energia.
E o sujeito:
— Hum... hum... hum... hum... hum...
— Assim... Assim... – prosseguia ela, abrasada e inflada - Vai, agora, vai, vai, aaaiiiiiii... E o hum... hum... hum... hum... hum...  decididamente não cessava.

Por voltas das três, saí do ar. Ao romper de uma manhã bonita e ensolarada acordei sobressaltado. Pulei ligeiro, espantei a cara mal repousada e cheia de sono, fiz a barba e em seguida tomei um demorado banho gelado. Desci às nove horas em ponto para o café. No salão reservado ao desjejum, deparei com vários grupos de homens e mulheres já acomodados às mesas. Procurei uma que estivesse vaga para me sentar. Notei, então, que todos riam baixinho, espiando discretamente para um balcão de madeira bem ao fundo da sala. Segui o olhar nessa direção com a curiosidade à flor da pele e esbarrei frontalmente com uma loirinha capaz de virar qualquer cabeça masculina. Trajava a cobiçável, um conjuntinho de lycra branco muito curto, que deixava, à mostra, tudo o que nela havia de melhor, além de um bonito e charmoso par de pernas bem torneadas.

CINCO
Não teria mais de 18 anos. Levava aos lábios um copo de leite, ao tempo em que acariciava o braço do seu acompanhante, um camarada baixinho e esquisito, aparentando uns 40, bastante simpático e carismático. A garçonete chegou para servir. Ao me virar, notei um sorriso maroto dançando nas covinhas finas de seu rosto ondulado. Em tom baixo, para não chamar a atenção, arrisquei perguntar:
— O que há com os dois?
— O senhor não ouviu nada esta noite?
— E como! Então eram eles?
— Em carne e osso.
— Quase não consegui me segurar no colchão...
— Nem eu...
— Como?
— Culpa deles!
— Tudo Bem! Depois, em outra noite, em outro hotel, em outra cidade, juro a você que tiro o atraso. Afinal, cá entre nós, o que existe de extraordinário em ouvir, madrugada adentro, um parzinho tão romântico (olhe para eles, não são engraçadinhos?) fazendo um amor gostoso, transando sem medo de ser feliz, numa boa? Quer saber? Essas coisas ativam os batimentos cardíacos, estimulam a circulação do sangue e encorajam a gente a continuar vivendo.

SEIS
Disfarçando a vontade de soltar de vez o riso, ela inclinou a cabeça e sussurrou bem perto de meu ouvido.
— O senhor me perguntou o que existe de extraordinário em ouvir um parzinho tão romântico transando numa boa?
— Sim!
— Ele é surdo e mudo! Isso é o que torna a coisa engraçada!

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Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. Do Sítio ”Shangri-La” – Um lugar perdido no meio do nada. 21-3-2017

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