Aparecido Raimundo de Souza
1
O APARTAMENTO defronte ao que Hernandes
Bananôncio mora possui duas campainhas distintas. Uma delas tem uma tampinha
cinza e o buraco redondo com duas pernas de fios soltas. Quando chega alguém
querendo falar com o morador, que, diga-se de passagem, nunca ninguém viu nem
mais gordo, nem mais magro, existe, abaixo do olho mágico da porta, uma
caixinha dessas modernas, ou melhor, a campainha de verdade, para que seja
comprimida e, uma vez acionada, alerte o residente de que há gente do lado de
fora. Sempre que pinta uma viva alma no pedaço, Hernandes Bananôncio fica
sabendo, não porque bisbilhote o tempo todo, longe disso. Simplesmente o alarme
sonoro do subir e descer do elevador dispara um “plim” igual ao da Globo, e
corroborando a atitude desse mecanismo, as dobradiças enferrujadas da velha
engenhoca rangem desesperadamente.
2
Nessas ocasiões, o rapaz aproveita para
explorar, claro, pelo visor da sua própria entrada e ver quem é a visita que
anda à cata do vizinho misterioso. Curiosidade de quem não tem o que fazer, a
não ser esperar passar os dias lendo um romance, vendo televisão e aguardando o
INSS, todo final de mês, depositar na sua conta bancária a aposentadoria
conseguida em decorrência de um acidente acontecido há um ano, quando um pesado
cachorro que vivia na cobertura de seu prédio (e até hoje, não ficou bem
esclarecido) despencou doze andares e veio com tudo, para baixo, caindo,
exatamente, sobre seus costados. Fora essa lembrança amarga, espreitar quem
bate no vizinho passou a ser um bom exercício para ajudar a passar o tempo e
fugir da rotina. Hernandes Bananôncio se depara, nessas ocasiões, com as
situações mais engraçadas e inusitadas possíveis. Dias atrás uma moça loira,
bem vestida, procurava pelo botãozinho da campainha. Ela não viu, diante de si,
a caixinha, abaixo do olho mágico, e, por essa razão, começou a futucar, na
esperança de enfiar um dos dedos no buraco da tampinha cinza e juntar os fios.
Os dedos não ajudaram em nada. Talvez fossem os anéis que atrapalhassem. Quem
sabe a cor dos cabelos. Em seguida ela introduziu o polegar e o indicador com o
objetivo de, a qualquer custo, fazer funcionar a geringonça. Puro fiasco. Saiu
furiosa, cuspindo marimbondos.
3
Não foi diferente com um cidadão
baixinho, aparentando uns quarenta anos, de chapéu na cabeça e uma bolsa dessas
007. O infeliz chegou ao cúmulo de, a certa altura das frustradas tentativas,
meter a cara no olho mágico com a finalidade de ver se pastorava alguma coisa
dentro da peça. Também teve problemas com os cordéis. Pelo visto, e pelo ar
desagradável que fechou em seu rosto, deve ter tomado um tremendo de um choque.
Desistiu, pois, da empreitada. Resmungando cobras e lagartos, deu meia volta e
desapareceu.
Hernandes Bananôncio chegou à conclusão
que as pessoas, de um modo geral, são levadas ao grotesco, e expostas ao
ridículo por pura comodidade. Ninguém para, por alguns instantes, com a
intenção de analisar o que está posto e visível diante do nariz. E pensar numa
solução simples, que culmine num resultado rápido e prático. Às vezes, um
problema insignificante, de finalização gritante e às vistas, está logo ali,
atropelando, esmagando, instigando, como se fosse uma cobra prestes a dar o
bote. Todavia, a pressa, aliada a azáfama e a afobação, juntas, de mãos dadas,
com a velha burrice derramam tudo a perder.
4
O incrível e cômico na história: quem
quer que chegue logo se vê às voltas com os atalhos da campainha. Talvez, no
fundo, seja essa a verdadeira intenção do dono do apartamento. Dar choque nos
chatos que não desistem de vir até ali perturbar o seu sossego. O engraçado
morador deve rir muito e se divertir um bocado. De qualquer forma, esse vizinho
de Hernandes Bananôncio não quer, decididamente, ser incomodado por ninguém.
Ora, se não quer ser molestado, por que, então, fornece o endereço de seu
domicilio? Desse, por exemplo, o de uma
tia, ou o de um amigo, ou da pizzaria logo ali na esquina, a menos de duzentos
metros e preservasse a sua privacidade com unhas e dentes, não com fios
desencapados.
***
Mas os trocinhos do nariz sonoro daquela campainha, soltos, de
certa forma instigam a atenção dos que acampam, de repente, diante da entrada
do elemento, seja com pressa, suando em bicas, ou porque tenham outros afazeres
a serem cumpridos, além daquele de estarem ali. Pelo sim, pelo não, todos os
que zanzaram, até agora, pelo corredor imenso, se olvidaram de atentar para os
mínimos detalhes e de apertar o botãozinho correto, logo abaixo do olho de
visão.
5
Hernandes Bananôncio percebeu, e não só
percebeu, aprendeu, e muito, com suas olhadelas clandestinas. Concluiu que cada
pessoa reage de uma maneira diferente. Uns destratam, afrontam, espinafram,
xingam. Outros fazem caretas, olham para todos os lados, desconfiados. Teve um visitante que, inconformado, se deu
ao trabalho de urinar no pé da porta, e, depois, seguir seu caminho. As
mulheres, em meio a essa confusão, são as mais interessantes de ser reparadas.
Elas se ajeitam antes. Penteiam os cabelos, retocam a maquiagem, renovam o
batom dos lábios num cunho estritamente ligado a favor da boa elegância. Os
homens são menos exigentes com a aparência. Só corrigem o nó da gravata, os
óculos, ou dão uma batida discreta, com uma das mãos, no paletó, para afastar
algum pozinho ou cisco, que, por ventura tenha grudado.
Final
No geral, pensam em tudo, esses
ilustres turistas, todavia se esquecem do mais comum e corriqueiro: apertar o
botãozinho da segunda campainha, logo abaixo do olho mágico, ou, por outra, de
baterem, suavemente, com os nós dos dedos, produzindo um leve e quase inaudível
toc... toc... toc... na porta sisuda, carrancuda e silenciosa, parada,
estática, sem vida, bem ali, diante de suas imperturbáveis imbecilidades.
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Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. Do
Sítio ”Shangri-La” – Um lugar perdido no meio do nada. 17-3-2017
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