Aparecido Raimundo de Souza
“Pingava tanto que um dia despingou”.
Bozó Bené
TODO SANTO DIA eu saía do serviço às
seis horas e trinta minutos em ponto e dava uma paradinha na padaria para
comprar pão. E sempre escutava a garçonete que rodava no salão, por entre as
mesas, gritar, espavorida, para os rapazes que ficavam atendendo aos seus
pedidos por detrás de um balcão imenso:
-“Solta um pingado... mesa cinco...”.
Não passava um minuto e ela voltava à
carga:
-“Um pingado para a mesa oito. Outro
para a doze...”.
2
Aquilo me intrigava. O que deveria ser
o tal do “pingado?”.
Como meu tempo era demasiadamente
curto, os minutos contados, passava a mão no embrulho, pagava meio que correndo
e voava para o ponto. Se perdesse o ônibus das seis e quarenta, só dali uma
hora encostaria outro. Para quem passou a noite toda acordada, e, pior, de pé,
andando para lá e para cá, dentro de um galpão imenso, cuidando de um bando de
rapazes sob a sua responsabilidade, quando dava o final do expediente, só via
pela frente o caminho da roça. Bater cartão, tirar a farda do trabalho, correr
para o ponto e embarcar no seis e quarenta.
3
Quanto mais rápido no sossego do lar,
mais tempo para relaxar. Antes, vinha o ritual de um banho refrescante e bem
demorado para espantar a inhaca, e, em seguida, o dejejum com café feito na
hora, misturado ao leite, acompanhado de pão, queijo, biscoitos de polvilho e,
um variado de guloseimas extras que minha esposa gostava de preparar.
Barriguinha cheia e satisfeita, a cama quentinha e solícita, abria os lençóis
em braços chamativos e convidada a me aninhar no macio do colchão e esquecer,
por completo, do mundo que corria, lá fora, além da cortina que enevoava,
sobremaneira, o aposento, tornando-o aconchegante ao meu enfastio da noite
passada em claro.
4
Lurdinha, minha cara-metade, reclamava,
e, com certa razão, uma atençãozinha especial. Queria uns carinhos, um trato,
um abraço. Um beijo, algo acolá do café que enfiava goela abaixo, com um
acometimento fora do normal. Confesso, nesse ponto da atenção a ela, deixava a
ver navios. Chegava esfalfado, estourado, enervado, aporrinhado, com dor de
cabeça. Não via a hora de cair no escurinho e apagar, sair do ar.
5
Tinha plena consciência de que se não
chegasse junto, de vez em quando, se não cumprisse com as obrigações maritais,
o casamento, cedo ou tarde, iria pras cucuias. Mas, por Deus, o serviço, o
cansaço, a estafa, a condução com gente saindo pelo ladrão... raramente
aparecia um lugar vago e a disposição, para ajudar a digerir a hora e meia de
todo o trajeto. Isso virara rotina. Minha vida se transformara num padrão estressante
de comportamento, onde, o ano inteiro, repetia igual procedimento, sem fugir
daquele modelo, arquétipo, como se fosse uma norma de estilo de vida escolhido
a dedo, por vontade própria.
6
Nada mudava, nada acontecia de novo.
Quadro imutável de uma vida em constante processo de decadência. Seis e meia,
pois, cravado, correr para bater o cartão, disparar para o vestiário, trocar de
roupas num abrir e fechar de olhos, padaria, e a lotação às seis e quarenta. Na
confeitaria, a garçonete, e a sua aparência imutável, o mesmo semblante, o
corpo esguio metido num uniforme batido e surrado e o chavão desmilinguido: “-
Solta um pingado pra mesa dez. Outro pra dezoito, um especial para o senhor
sentado no banquinho do balcão...”.
7
A minha curiosidade crescia, junto com
a afobação e com o atropelo de chegar logo na minha humilde residência e
dormir. Nos braços ternos de Morfeu, sonhava com o tal do “pingado”... Jesus,
Maria, José, o que seria o desconhecido “pingado”, tão disputado, tão desejado,
tão amado por todos que frequentavam aquele estabelecimento? Pingado, pingado,
pingado e o tempo se descorando, se desfalecendo entre o protocolo da padaria e
o culto como uma idolatria ao buzão das seis e quarenta...
- “Amor, vamos namorar? Você não
comparece tem mais de mês!...”.
- “Lurdinha, deixa pra amanhã...”.
8
O amanhã chegava e eu não comparecia.
Não me manifestava. Não dava no couro. Lurdinha, então, em ato extremo, subindo
pelas paredes, me agarrava, me catava, como se diz, grosso modo, “à força, no
laço, no tapa, no ‘é agora ou nunca’”.
- “De hoje você não me escapa, seu
safadinho malandro. Devo lembrar a você, meu companheiro e amante, que estou
chamando urubu de meu louro...”.
9
E Lurdinha se enrodilhava me beijava,
me acarinhava louca, tesa, cheia de amor para dar, envolvida numa empolgação
desvairada e fora de si. Trepando de
costas, de lado, de frente, de banda, como fogo morro acima, água ribanceira
abaixo, ela partia pro ataque. O cansaço nesses instantes, não dava trégua,
seguia junto. De braços dados, marcando presença, entranhado, duro na queda,
sem dar espaço... e, de contrapeso, as recordações do cartão de ponto, a
padaria, o coletivo às seis e quarenta atrelado ao maldito pingado. Oxalá! O
que seria, afinal, esse pingado?
***
10
Belo dia... bela manhã me deu na telha,
assim, de supetão, e resolvi quebrar a virgindade desse tabu que me corroía as
entranhas. Às favas o coletivo das seis e quarenta. Não suportava mais o
pingado me pingando na mente como uma torneira mal fechada. Como a chuva no
telhado gotejando igual látego martirizante no meu consciente submisso.
Pingado... pingado... pingado.
11
Não tinha mais saco, mais cabeça, mais
paciência para sentir esse desconforto gotejando, destilando, marejando,
vertendo, me corroendo o corpo, a mente, o espírito, os pensamentos, minha
vida, enfim...
... “Hoje desvendo o mistério. Que se
dane o resto, que se afumente o seis e quarenta. Embarco no próximo...”.
12
Resoluto, senhor de mim, cheguei pra a
moça, pedi os pães... Enquanto ela ensacava, gritei para a garçonete de todas
as manhãs iguais.
- “- Me veja um pingado, por
favor!...”.
- “- Vai sentar?”.
- “Num dos assentos do balcão”.
Aos bravios a jovem mandou a ordem:
- “Um pingado no balcão”.
Em seguida, indagou solícita:
- “Algo para comer, senhor?”.
- “Não, obrigado, minha fofa. Só o
pingado”.
Ao me acomodar, finalmente, no balcão,
me deparei com o tal do pingado. Nada além de um café com leite, servido numa xícara
de porte médio, igual à que eu tomava todas as santas manhãs, no conforto da
mesa, ladeado de Lurdinha, minha adorada e querida esposa.
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“LINHAS MALDITAS” VOLUME 3.
Título e
texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. Do
Sítio ”Shangri-La” – Um lugar perdido no meio do nada. 14-3-2017
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