sexta-feira, 17 de março de 2017

[Aparecido rasga o verbo] Nó na garganta

Aparecido Raimundo de Souza

1
MAL E PORCAMENTE, PANTOLFO chegou da rua e se acomodou no sofá da sala para tirar os sapatos. O pequeno Luan, que assistia desenhos na Cartoon Network, desligou o aparelho e encarou o pai, muito sério.
-              Pai, o senhor saberia me explicar quem nasceu primeiro? O homem ou a mulher?
-              O homem.
-              E a mulher?
-              Veio de uma costela de Adão.
-              E quem é Adão?
-              O primeiro homem.


2
O garoto saiu de seu lugar e se sentou ao lado do pai cruzando as pernas como se fosse adulto.
-              Foi?
-              Isso.
-              E onde ele está agora?
-              Morto.
-              Se ele está morto, como é que a mulher nasceu da costela dele?
-              Obra de Deus, meu filho. Obra de Deus. Cadê sua mãe?
-              Saiu com a Maria. Foram ao supermercado fazer compras.
-              Seu irmãozinho?
-              No parquinho com a babá. Pai, tem um negócio que está me causando um monte de dúvidas? Será que o senhor... 
-              Se estiver ao meu alcance.
-              Voltando a esse tal de Adão. O senhor falou que a mulher veio da costela dele. Se a mulher veio da costela desse tal de Adão, a mamãe saiu da sua costela?
-              Não, filho. Mamãe e papai são diferentes.
-              Diferentes? Como?
-              Mamãe nasceu na casa de seu avô Tonico e de sua avó Simone.
-              E o senhor?
-              Eu vim da casa de vovô Anacleto e de vovó Custódia.


3
O moleque parecia absorto em pensamentos distantes.
-              Pai, onde é que o vovô Tonico e a vovó Simone nasceram? E o vovô Anacleto mais a vovó Custódia, vieram do mesmo lugar?
Boquiaberto, Pantolfo não sabia o que responder. Precisava pensar rápido, inventar uma desculpa qualquer que satisfizesse a curiosidade do filho e o retornasse aos desenhos.
-              Todos eles vieram lá do céu, no bico de uma cegonha enorme. 
-              O senhor também veio no bico dessa cegonha?
-              Como todo mundo...
-              Pai, essa cegonha traz gente grande igual todo adulto ou só carrega criança do meu tamanho?
-              Só criança do seu tamanho.
-              No bico?
-              No bico.
-              E a criança não cai?
-              Não, não cai. A cegonha é muito cuidadosa.

4
Luan começou a estalar os dedos das mãos, como fazia seu avô Anacleto. Parecia nervoso e preocupado. Aliás, estava. E muito.
-              Pai, meu irmão Lucas veio no bico dessa cegonha?
-              Veio. E pousou bem aí nos fundos do quintal.
-              Que troço mais esquisito!...
-              O que é esquisito, filho?
-              Se for mesmo a cegonha quem trás as crianças como é que o Lucas saiu da barriga da mamãe e nasceu na maternidade? Será que a cegonha errou de endereço?



5
Pantolfo abriu a boca e franziu o cenho diante dessas revelações. Para ele, até então, o guri não passava de uma criança com o espírito embebido na aventura da idade e estava só querendo conhecer um pouco mais da vida. Todavia, a história da barriga e da maternidade mexeu fundo com sua cabeça.
-              Quem falou que o Lucas saiu da barriga da mamãe e nasceu na maternidade?
-              O padre.
-              Padre? Que padre?
-              Padre Gregório.
-              Quem levou você a esse tal de padre Gregório?
-              Tia Elaine.
-              Quando?
-              Não sei.
-              Não sabe?
-              Acho que “era” ontem.


6
Risos.
-              Sua mãe acompanhou vocês?
-              Não. Mamãe parou na padaria.
-              Na padaria?
-              É, pai. Ela disse à tia Elaine que iria comprar uns trecos: ovos, pão de forma, manteiga, não sei mais o quê e fermento.
-              Fermento? Para que sua mãe precisa de fermento?
-              Acho que é para pôr na torta que vai fazer para tia Vânia.
-              Torta para tia Vânia?
-              Ela vai fazer aniversário, esqueceu? Mamãe está preparando uma torta de surpresa. Eu e tia Elaine fomos até a paróquia convidar o padre.
-              Mmmmmmm!...
-              Pai, o padre Gregório é mulher?
-              Não conheço pessoalmente o padre Gregório, filho, mas por tudo quanto é mais sagrado, de onde você tirou essa ideia?
-              Ele não usa uma saia preta e comprida?
-              Todos os padres usam.  De mais a mais, aquilo não é saia. É batina.
-              Mamãe usa batina?
-              Sua mãe usa saia.
-              E tia Elaine usa batina?
-              Saia.
-              E tia Vânia?
-              Saia. Todas usam saia. A Maria, a babá de seu irmão, sua avó...
-              Por que os padres usam batina e não vestem calça?  O senhor não acha que tia Elaine e tia Vânia ficariam mais bonitas se usassem uma batina igual à do padre Gregório? Ou vice-versa? O senhor teria coragem de usar batina, ou uma saia bem curta igual à da Maria, nossa empregada?


7
Pantolfo começava a mostrar sinais de irritação e impaciência. O moleque queria saber demais, e a uma velocidade vertiginosa. Torrava a paciência. Principalmente depois de um dia estafante e cheio de encrencas no escritório da companhia. Teve uma ideia.
-              Filho, você não quer chupar um sorvete?
-              De morango ou de abacaxi?
-              Você escolhe o sabor que melhor que aprouver.
-              Melhor o quê?
-              Agradar. Aquele que melhor lhe der satisfação.


8
Luan, contudo, não se fez de rogado. Voltou à bateria de perguntas.
-              Pai, como é o nome da primeira mulher?
-              Eva.
-              Eva?
-              Eva.
-              Gozado! O senhor não vai acreditar. Ela mora ali embaixo, depois da pracinha, perto do açougue. É a mãe do Funchal.
-              Mãe... mãe de quem?
-              Do Funchal, um colega meu. Estuda comigo. A gente senta um ao lado do outro.
-              Filho, essa Eva é outra. Não é a que saiu da costela de Adão.
-              Como é que essa outra Eva conseguiu sair da costela desse tal de Adão?
-              Já disse: ela não saiu...
-              O senhor não acabou de falar que a Eva saiu da costela de Adão?
-              Sim.
-              Então?


9
Pantolfo colocou as mãos em concha no rosto miúdo do garoto e tentou parecer calmo. Por dentro, entretanto, uma pilha.
-              Lembro que estávamos comentando a respeito da primeira mulher, não da mãe de seu amiguinho aí...  como é mesmo o nome?
-              Funchal.
-              Claro, Funchal. Que nome!

Luan continuava disposto a não dar tréguas.
-              Pai, o que é costela?

Em resposta, o pobre e cansado pai arrancou do bolso uma nota de dez reais e a balançou no ar.
-              Olha só. Vamos gastar tudo em sorvetes?
-              O senhor não respondeu: costela, o que é costela?
-              Está bem. Você ganhou. Costela, ou melhor, costelas, são esses ossos que temos aqui nas costas.


10
No que falava, Pantolfo se posicionou de lado e, com o braço esquerdo, tentou indicar as vértebras à linha média no ventral do tronco.
-              Está vendo?
-              Não senhor.
-              Tudo bem. Vamos voltar aos sorvetes? Você falou em morango e abacaxi...
O menino, porém, andava longe.
-              Droga! Agora acho que “pirei...”.


11
Pela segunda vez Pantolfo voltou a arregalar os olhos. Fixou o rosto do filho como nunca havia feito até então. Não queria acreditar no que acabara de ouvir.
-              Acha que o quê?
-              Pirei...
-              Explique “pirei”.
-              Todos os meus amiguinhos da escola falam: pirei quando vi a professora levantando a calcinha no banheiro, pirei quando minha madrasta chegou e me pegou batendo uma punheta. Pirei quando o diretor me pegou mijando, de pau duro, na parede da secretaria...
-              E no seu caso, como é que você acha que pirou?
-              Tio Léo veio dormir aqui em casa quando o senhor viajou.
-              E daí?
-              Trouxe com ele a tia Berenice. Eu escutei os dois conversando lá no quarto da Maria. Tio Léo disse e mamãe também ouviu quando ele falou que a tia Berenice era a costela dele. Tia Berenice saiu da costela do tio Léo, pai?


12
O telefone tocou. Pantolfo quase à beira de um ataque de nervos (não tinha mais saída para tantas perguntas e, sobretudo, empombado com a sagacidade e a inteligência do primogênito), deu um pulo do sofá e correu atender. Graças a Deus havia sido salvo pelo gongo. Mais um bloco de perguntas e entraria em pânico. Do outro lado da linha alguém procurava pelo Luan.
-              É seu amigo navio...
O pequeno franziu o cenho.
-              Meu amigo navio? Eu não tenho nenhum amigo navio, pai.
O infeliz levou as mãos à cabeça. Não sabia mais o que fazer, ou dizer.


13
Na verdade, sua vontade se constituía numa só: arrancar os poucos fios de cabelo e sair correndo feito um louco pelo meio da rua. Optou por gritar o nome do coleguinha e pronto. Assunto encerrado.
-              Funchal, Funchal. É o Funchal...
-              E por que o senhor chamou meu amigo Funchal de navio?
Teve vontade de explicar ao sapeca que Funchal era um transatlântico que ele vira atracado no porto, quando voltava para casa. E, coincidentemente, seu amiguinho tinha o mesmo nome desse navio.


14
Conteve o ímpeto a tempo. Sabia, de antemão, que qualquer observação feita ela não ficaria restrita só a pequenos pormenores.   
-              Escuta aqui, seu espertinho. Atenda ao telefone e deixe de conversa fiada. Vou lá fora comprar cigarros.
-   Cigarros? Para quem? O senhor não fuma!... e o meu sorvete? Cadê o dinheiro que o senhor tirou do bolso e ia me dar para comprar sorvetes?

AVISO AOS NAVEGANTES:
PARA LER E PENSAR, SE O FACEBOOK, CÃO QUE FUMA OU OUTRO SITE QUE REPUBLICA MEUS TEXTOS, POR QUALQUER MOTIVO QUE SEJA VIEREM A SER RETIRADOS DO AR, OU OS MEUS ESCRITOS APAGADOS E CENSURADOS PELAS REDES SOCIAIS, O PRESENTE ARTIGO SERÁ PANFLETADO E DISTRIBUÍDO NAS SINALEIRAS, ALÉM DE INCLUÍ-LO EM MEU PRÓXIMO LIVRO “LINHAS MALDITAS” VOLUME 3.
Título e texto: Aparecido Raimundo de Souzajornalista. Do Sítio ”Shangri-La” – Um lugar perdido no meio do nada. 16-3-2017

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