Aparecido Raimundo de Souza
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MAL
E PORCAMENTE, PANTOLFO chegou da rua e se acomodou no sofá da sala para tirar
os sapatos. O pequeno Luan, que assistia desenhos na Cartoon Network, desligou
o aparelho e encarou o pai, muito sério.
- Pai, o senhor saberia me explicar
quem nasceu primeiro? O homem ou a mulher?
- O homem.
- E a mulher?
- Veio de uma costela de Adão.
- E quem é Adão?
- O primeiro homem.
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O
garoto saiu de seu lugar e se sentou ao lado do pai cruzando as pernas como se
fosse adulto.
- Foi?
- Isso.
- E onde ele está agora?
- Morto.
- Se ele está morto, como é que a
mulher nasceu da costela dele?
- Obra de Deus, meu filho. Obra de
Deus. Cadê sua mãe?
- Saiu com a Maria. Foram ao
supermercado fazer compras.
- Seu irmãozinho?
- No parquinho com a babá. Pai, tem um
negócio que está me causando um monte de dúvidas? Será que o senhor...
- Se estiver ao meu alcance.
- Voltando a esse tal de Adão. O
senhor falou que a mulher veio da costela dele. Se a mulher veio da costela
desse tal de Adão, a mamãe saiu da sua costela?
- Não, filho. Mamãe e papai são
diferentes.
- Diferentes? Como?
- Mamãe nasceu na casa de seu avô
Tonico e de sua avó Simone.
- E o senhor?
- Eu vim da casa de vovô Anacleto e
de vovó Custódia.
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O
moleque parecia absorto em pensamentos distantes.
- Pai, onde é que o vovô Tonico e a
vovó Simone nasceram? E o vovô Anacleto mais a vovó Custódia, vieram do mesmo
lugar?
Boquiaberto,
Pantolfo não sabia o que responder. Precisava pensar rápido, inventar uma
desculpa qualquer que satisfizesse a curiosidade do filho e o retornasse aos
desenhos.
- Todos eles vieram lá do céu, no
bico de uma cegonha enorme.
- O senhor também veio no bico dessa
cegonha?
- Como todo mundo...
- Pai, essa cegonha traz gente
grande igual todo adulto ou só carrega criança do meu tamanho?
- Só criança do seu tamanho.
- No bico?
- No bico.
- E a criança não cai?
- Não, não cai. A cegonha é muito
cuidadosa.
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Luan
começou a estalar os dedos das mãos, como fazia seu avô Anacleto. Parecia
nervoso e preocupado. Aliás, estava. E muito.
- Pai, meu irmão Lucas veio no bico
dessa cegonha?
- Veio. E pousou bem aí nos fundos
do quintal.
- Que troço mais esquisito!...
- O que é esquisito, filho?
- Se for mesmo a cegonha quem trás
as crianças como é que o Lucas saiu da barriga da mamãe e nasceu na
maternidade? Será que a cegonha errou de endereço?
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Pantolfo
abriu a boca e franziu o cenho diante dessas revelações. Para ele, até então, o
guri não passava de uma criança com o espírito embebido na aventura da idade e
estava só querendo conhecer um pouco mais da vida. Todavia, a história da
barriga e da maternidade mexeu fundo com sua cabeça.
- Quem falou que o Lucas saiu da
barriga da mamãe e nasceu na maternidade?
- O padre.
- Padre? Que padre?
- Padre Gregório.
- Quem levou você a esse tal de
padre Gregório?
- Tia Elaine.
- Quando?
- Não sei.
- Não sabe?
- Acho que “era” ontem.
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Risos.
- Sua mãe acompanhou vocês?
- Não. Mamãe parou na padaria.
- Na padaria?
- É, pai. Ela disse à tia Elaine que
iria comprar uns trecos: ovos, pão de forma, manteiga, não sei mais o quê e
fermento.
- Fermento? Para que sua mãe precisa
de fermento?
- Acho que é para pôr na torta que
vai fazer para tia Vânia.
- Torta para tia Vânia?
- Ela vai fazer aniversário,
esqueceu? Mamãe está preparando uma torta de surpresa. Eu e tia Elaine fomos
até a paróquia convidar o padre.
- Mmmmmmm!...
- Pai, o padre Gregório é mulher?
- Não conheço pessoalmente o padre
Gregório, filho, mas por tudo quanto é mais sagrado, de onde você tirou essa
ideia?
- Ele não usa uma saia preta e
comprida?
- Todos os padres usam. De mais a mais, aquilo não é saia. É batina.
- Mamãe usa batina?
- Sua mãe usa saia.
- E tia Elaine usa batina?
- Saia.
- E tia Vânia?
- Saia. Todas usam saia. A Maria, a
babá de seu irmão, sua avó...
- Por que os padres usam batina e
não vestem calça? O senhor não acha que
tia Elaine e tia Vânia ficariam mais bonitas se usassem uma batina igual à do
padre Gregório? Ou vice-versa? O senhor teria coragem de usar batina, ou uma
saia bem curta igual à da Maria, nossa empregada?
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Pantolfo
começava a mostrar sinais de irritação e impaciência. O moleque queria saber
demais, e a uma velocidade vertiginosa. Torrava a paciência. Principalmente
depois de um dia estafante e cheio de encrencas no escritório da companhia.
Teve uma ideia.
- Filho, você não quer chupar um
sorvete?
- De morango ou de abacaxi?
- Você escolhe o sabor que melhor
que aprouver.
- Melhor o quê?
- Agradar. Aquele que melhor lhe der
satisfação.
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Luan,
contudo, não se fez de rogado. Voltou à bateria de perguntas.
- Pai, como é o nome da primeira
mulher?
- Eva.
- Eva?
- Eva.
- Gozado! O senhor não vai
acreditar. Ela mora ali embaixo, depois da pracinha, perto do açougue. É a mãe
do Funchal.
- Mãe... mãe de quem?
- Do Funchal, um colega meu. Estuda
comigo. A gente senta um ao lado do outro.
- Filho, essa Eva é outra. Não é a
que saiu da costela de Adão.
- Como é que essa outra Eva
conseguiu sair da costela desse tal de Adão?
- Já disse: ela não saiu...
- O senhor não acabou de falar que a
Eva saiu da costela de Adão?
- Sim.
- Então?
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Pantolfo
colocou as mãos em concha no rosto miúdo do garoto e tentou parecer calmo. Por
dentro, entretanto, uma pilha.
- Lembro que estávamos comentando a
respeito da primeira mulher, não da mãe de seu amiguinho aí... como é mesmo o nome?
- Funchal.
- Claro, Funchal. Que nome!
Luan
continuava disposto a não dar tréguas.
- Pai, o que é costela?
Em
resposta, o pobre e cansado pai arrancou do bolso uma nota de dez reais e a
balançou no ar.
- Olha só. Vamos gastar tudo em
sorvetes?
- O senhor não respondeu: costela, o
que é costela?
- Está bem. Você ganhou. Costela, ou
melhor, costelas, são esses ossos que temos aqui nas costas.
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No
que falava, Pantolfo se posicionou de lado e, com o braço esquerdo, tentou
indicar as vértebras à linha média no ventral do tronco.
- Está vendo?
- Não senhor.
- Tudo bem. Vamos voltar aos
sorvetes? Você falou em morango e abacaxi...
O
menino, porém, andava longe.
- Droga! Agora acho que “pirei...”.
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Pela
segunda vez Pantolfo voltou a arregalar os olhos. Fixou o rosto do filho como
nunca havia feito até então. Não queria acreditar no que acabara de ouvir.
- Acha que o quê?
- Pirei...
- Explique “pirei”.
- Todos os meus amiguinhos da escola
falam: pirei quando vi a professora levantando a calcinha no banheiro, pirei
quando minha madrasta chegou e me pegou batendo uma punheta. Pirei quando o
diretor me pegou mijando, de pau duro, na parede da secretaria...
- E no seu caso, como é que você
acha que pirou?
- Tio Léo veio dormir aqui em casa
quando o senhor viajou.
- E daí?
- Trouxe com ele a tia Berenice. Eu
escutei os dois conversando lá no quarto da Maria. Tio Léo disse e mamãe também
ouviu quando ele falou que a tia Berenice era a costela dele. Tia Berenice saiu
da costela do tio Léo, pai?
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O
telefone tocou. Pantolfo quase à beira de um ataque de nervos (não tinha mais
saída para tantas perguntas e, sobretudo, empombado com a sagacidade e a
inteligência do primogênito), deu um pulo do sofá e correu atender. Graças a
Deus havia sido salvo pelo gongo. Mais um bloco de perguntas e entraria em
pânico. Do outro lado da linha alguém procurava pelo Luan.
- É seu amigo navio...
O
pequeno franziu o cenho.
- Meu amigo navio? Eu não tenho
nenhum amigo navio, pai.
O
infeliz levou as mãos à cabeça. Não sabia mais o que fazer, ou dizer.
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Na
verdade, sua vontade se constituía numa só: arrancar os poucos fios de cabelo e
sair correndo feito um louco pelo meio da rua. Optou por gritar o nome do
coleguinha e pronto. Assunto encerrado.
- Funchal, Funchal. É o Funchal...
- E por que o senhor chamou meu
amigo Funchal de navio?
Teve
vontade de explicar ao sapeca que Funchal era um transatlântico que ele vira
atracado no porto, quando voltava para casa. E, coincidentemente, seu amiguinho
tinha o mesmo nome desse navio.
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Conteve
o ímpeto a tempo. Sabia, de antemão, que qualquer observação feita ela não
ficaria restrita só a pequenos pormenores.
- Escuta aqui, seu espertinho.
Atenda ao telefone e deixe de conversa fiada. Vou lá fora comprar cigarros.
- Cigarros? Para quem? O senhor não fuma!... e
o meu sorvete? Cadê o dinheiro que o senhor tirou do bolso e ia me dar para
comprar sorvetes?
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Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. Do
Sítio ”Shangri-La” – Um lugar perdido no meio do nada. 16-3-2017
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