Rui Ramos
As eleições de 4 de Outubro
geraram uma situação em que, como já toda a gente percebeu, quem não for para o
governo, virá para a rua contestar a “legitimidade” de quem fique a governar.
Imaginemos que o presidente da
república, uma vez o governo de Pedro Passos Coelho chumbado no parlamento,
decide mantê-lo em gestão. A frente PCP-BE-Costa declarar-se-ia imediatamente
vítima de uma exclusão “ilegítima”. Teríamos em pouco tempo as camionetas da
CGTP a encher o Terreiro do Paço de fúria contra a ditadura presidencial e
contra políticas rejeitadas por 60% do eleitorado.
Imaginemos, em vez disso, que
o presidente dá posse a um governo minoritário de António Costa, sustentado
pelo PCP e pelo BE. A coligação PSD-CDS anunciaria logo ter sido roubada da sua
vitória eleitoral. Não lhe seria difícil inspirar indignação contra o governo
“ilegítimo” de uma coligação de derrotados, e suscitar protestos contra um
primeiro-ministro rejeitado por 68% do eleitorado.
A dramatização é inevitável,
porque o sistema político português mudou radicalmente: pela primeira vez, o
líder de um partido poderá ser primeiro-ministro sem ter sido o mais votado;
pela primeira vez, o PCP e os neo-comunistas do BE poderão participar na
governação. Mas as últimas eleições ainda foram disputadas segundo as regras e
as convenções antigas. Será por isso possível a um ou a outro lado contestar a
“legitimidade” do resultado político das eleições, seja esse resultado o
governo de Passos ou o de Costa: uns invocarão as regras antigas, outros
afirmarão a existência de regras novas.
Não sendo possível voltar
atrás, só há um remédio: consagrar eleitoralmente as novas regras e convenções,
isto é, disputar o mais depressa possível eleições em que candidatos e
eleitores estejam à partida cientes de que governará o partido que congregar
mais apoio parlamentar, mesmo que, por hipótese, seja o menos votado, e que um
voto no PS já não é um voto no extinto “arco-da-governação”, mas numa “maioria
de esquerda”. Só novas eleições podem evitar as questões de “legitimidade” que
de outro modo envenenarão a vida pública portuguesa nos próximos anos.
Aceite a solução eleitoral, há
uma primeira dificuldade: que fazer entre a eventual queda do governo de Passos
Coelho e a data mais próxima para novas eleições, isto é, entre Novembro de
2015 e Junho de 2016? Manter o governo de Passos Coelho em gestão ou nomear
António Costa para um governo temporário não seriam boas opções: qualquer delas
provocaria apenas a mobilização dos excluídos, para além das dificuldades
associadas a um regime de gestão no primeiro caso. Um governo de iniciativa
presidencial, que seria a outra possibilidade, não parece entusiasmar nem o
próprio presidente.
Por tudo isso, há que encarar
outro tipo de solução governativa, e essa pode ser a de um governo de transição
que resultasse de um pacto entre os partidos parlamentares, com vista a
garantir a governação até às próximas eleições. A iniciativa caberia aos
partidos, e seria depois sancionada pelo presidente da república. Esse governo
continuaria a responder perante o parlamento e o país. Não corresponderia a
nenhuma “suspensão da democracia”, mas apenas à necessidade de assegurar uma
governação eficaz e imparcial num período entre eleições. Teria um prazo
definido e um mandato que o habilitasse a corresponder a todas as urgências
decorrentes da situação financeira e dos compromissos internacionais (os quais
são agora aceites por todos os partidos, a crer no que é dito pelos
negociadores da “maioria de esquerda”). Mas limitar-se-ia a si próprio quanto a
outras decisões. Não seria um governo de gestão, mas um governo que, com plenos
poderes, os exerceria com prudência e contenção.
Para protagonizar esta
governação, os partidos poderiam recorrer a personalidades públicas com um
estatuto de tipo “senatorial”, distantes das querelas partidárias: por exemplo,
pessoas com o perfil de Guilherme de Oliveira Martins, Teodora Cardoso, Eduardo
Marçal Grilo, João Lobo Antunes, Emílio Rui Vilar, Joaquim Gomes Canotilho,
Eduardo Catroga, Luís Campos e Cunha, João Salgueiro, ou Artur Santos Silva. É
uma fórmula inédita, mas, como dizia Brecht: quando há obstáculos, a linha
torta pode ser o caminho mais curto entre dois pontos.
Esta solução teria outra
vantagem: prevenir uma eventual pressão partidária para transformar as eleições
presidenciais de Janeiro na segunda volta das legislativas de 4 de Outubro. Com
um acordo entre os partidos para novas eleições e a governação assegurada deste
modo para um período de transição, o novo presidente da república teria
certamente em conta o consenso nacional, e, logo que possível, dissolveria a
Assembleia da República e marcaria eleições para a data mais próxima. Aos
cidadãos caberia então fazer uma escolha decisiva, entre a coligação PSD-CDS e
a frente PCP-BE-Costa. Seria a ocasião para o país resolver de uma vez por
todas se pretende manter as políticas de defesa do crédito público e
continuação no euro, ou seguir por outro caminho. Ninguém que esteja certo de
ter o país consigo deve ter medo de eleições.
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