Alberto Gonçalves
Entre as misérias que o
salazarismo nos legou, uma das piores foi o mito de que o PCP combateu a
ditadura em nome da liberdade. No mundo real, o PCP lutava por uma ditadura
mais repressiva, da qual aliás se espreitou o grotesco rosto em 1975. Em 2015,
é ridículo - e sobretudo triste - ter de o lembrar. Mas a lenda da
"generosidade" comunista resistiu ao 25 de Novembro, à queda do Muro
e à enésima divulgação das carnificinas pedagógicas inspiradas por Marx. Em
países sem tradição autocrática recente, o comunismo, em qualquer das
sangrentas variantes, é o tique nervoso de uns poucos excêntricos, geralmente
confinados à universidade ou ao manicómio. Graças ao Estado Novo, os comunistas
nativos chegam a 20% no Parlamento. E, em estimativa moderada, a uns 50% nos
media.
É por isso que, por cá, cada
avanço da "extrema-direita" no "estrangeiro" equivale às
trombetas do Apocalipse, enquanto a ascensão caseira de PCP e BE é a abertura
necessária a forças e eleitores injustamente marginalizados. Nestes dias, não
faltam idiotas úteis e inúteis a celebrar o fim do "arco da
governação". Embora feiinha, a expressão não é absurda: convém limitar o
governo de uma democracia a partidos cujo desígnio não consista na aniquilação
da dita. Isto para dizer que Cavaco Silva esteve bem.
Imagine-se uma história
alternativa. Imagine-se que o PS ganhava as eleições sem maioria nem indícios
de apoio parlamentar. Imagine-se que o PSD e o CDS ensandeciam e namoravam os
deputados do PNR e do recém--legalizado MIRN para estabelecer uma frente de
direita e formar governo. Imagine-se que o presidente António Guterres
rejeitava a possibilidade sob o argumento de que a frágil situação nacional não
deveria ser comprometida por forças avessas aos, cito, "grandes
compromissos", do euro à NATO, do Tratado Orçamental à UE. Quantos dos que
agora berram contra a "parcialidade" de Cavaco Silva berrariam nesse
dia contra a "parcialidade" de Guterres?
Desconfio que poucos: para a
esquerda, a parcialidade naturalmente só incomoda quando não a beneficia. Os
ataques desenfreados de Soares às maiorias de Cavaco (ambas sem o MIRN e o PNR)
foram uma espectacular manifestação de consciência cívica. Os truques de
Sampaio para despachar a maioria absoluta da "direita" (de novo sem o
MIRN e o PNR) e consagrar Sócrates foram a prova de que tínhamos estadista. A
aparente rejeição de Cavaco a qualquer "solução" que envolva a
extrema-esquerda é, a acreditar no berreiro que por aí vai, uma vingança
inconstitucional.
Apenas um pormenor: não é. A
Sagrada Constituição permite que o PR faça o que ameaçou fazer e, face ao
avanço de radicais perigosos e derrotados, prefira um governo dito de
"gestão". A esquerda não gosta? A "direita", por acaso a
"direita" que elegeu Cavaco Silva, sim. Legalidade por legalidade,
legitimidade por legitimidade, é tudo questão de gosto.
Eu limito-me a achar que as
consequências de um governo limitado na decisão são menos nefastas do que as
consequências de um governo ilimitado na alucinação. Haverá quem ache o
contrário e julgue que o PR escolheu o partido em lugar do país. Por acaso, é
evidente que escolheu o país em lugar do partido: para o PSD (e a coligação),
oito meses de oposição a um bando de nulidades chantageadas por fanáticos seria
uma mina eleitoral. Seria porém uma calamidade talvez definitiva para Portugal.
Se, como é plausível, Passos
Coelho e Portas recusarem o arranjo da "gestão", assistirão na
plateia à comédia da "muralha de aço" (este PS demente que já adoptou
a expressão) e, lá para Julho, garantem maioria nunca vista. O problema é que,
entretanto, o hilariante espectáculo terá tornado anacrónica a proverbial
comparação com a Grécia: a curto prazo, habilitamo-nos a ser a Venezuela. E não
sobrará ninguém para rir.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 25-10-2015
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