José Manuel Fernandes
Toda a polémica em torno das palavras
desastradas de Dijsselbloem não visam mais do que esconder o que muitos sempre
detestaram: que com a solidariedade europeia viessem também deveres e
obrigações.
A coisa mais fácil do mundo é bater em
mortos – e Dijsselbloem é, depois da copiosa derrota dos socialistas holandeses
nas eleições da semana passada, um cadáver político.
É ainda mais fácil bater em mortos
quando eles fingem estar vivos e se põem a jeito, como Dijsselbloem se pôs com os seus comentários numa entrevista ao jornal
alemão Frankfurter Allgemeine.
As redes sociais exultaram (as
indignações ofendidas são a sua especialidade), editorialistas houve que lhe
chamaram – e cito – “bronco racista”, outros de que lhes puxou para a veia
poética e catalogaram-no como “parvo” e “ignorante”, ou ainda
que alvitraram que a “caserna está mesmo a precisar de uma
limpeza geral”.
De facto não há como um Dijsselbloem
para nos pôr todos de acordo. Augusto Santos Silva e Paulo Rangel. Santana Lopes e António Vitorino. Carlos César e Isabel Pires. Nas redes sociais houve mesmo deputados de todas as bancadas que não se contiveram e
gritaram contra o “traste”, o “lacaio” ou mesmo simplesmente o “parvalhão”.
Tudo coroado com o próprio primeiro-ministro a considerar que Dijsselbloem foi “racista,
xenófobo e sexista”.
Foi um fartote, talvez mesmo uma
pândega. A honra lusitana foi lavada, o orgulho da pátria restaurado. Há muito
tempo que não me recordo de tanta convergência num desígnio nacional: o de
correr, depressa e se possível a pontapé, o holandês da presidência do Euro
grupo. Até os socialistas lhe querem dar uma corrida em osso, ele que é
socialista, e logo para colocar no seu lugar um conservador, o espanhol Luís de
Guindos. Até o líder dos socialistas no Parlamento Europeu, o italiano Gianni
Pittella, se juntou ao coro (o que levou alguns a recordarem que ainda recentemente a Grécia lhe
outorgou cidadania honorária).
Como detesto unanimidades, vou fazer
de desmancha prazeres. E começar por dizer o que devia ser óbvio: em abstrato,
se não enfiarmos logo a carapuça, aquilo que Dijsselbloem disse não só é correto
como é um princípio que aplicamos regularmente nas nossas vidas. Cito a frase
na íntegra:
“O pacto na zona euro baseia-se na
confiança. Com a crise do euro, os países do Norte na zona euro mostraram a sua
solidariedade para com os países em crise. Como socialdemocrata considero a
solidariedade extremamente importante. Mas quem a exige, também tem obrigações.
Não posso gastar todo o meu dinheiro em álcool e mulheres e continuar a pedir
ajuda. Este princípio aplica-se a nível pessoal, local, nacional e,
inclusivamente, europeu.”
A imagem é infeliz e politicamente explosiva?
Faz com que Dijsselbloem deixe de ter condições para presidir ao Euro grupo?
Até concordo, porque em política o que parece é, e o que aquela frase parece
dizer (mas não diz) é que no Sul da Europa andamos todos entretidos com álcool
e mulheres. Mas eu, que mesmo tendo crescido num país católico tenho uma
costela calvinista, percebo muito bem a relação entre solidariedade e
obrigações. Talvez os calvinistas – e não há calvinistas como os holandeses –
coloquem demasiada ênfase nas obrigações, mas a mim, como português,
preocupa-me que gostemos sempre mais de empurrar a culpa para outros e esquecer
o lado dos deveres e responsabilidades.
O episódio permite, no entanto,
desenterrar, e por isso revisitar, muitos equívocos dos últimos anos.
O primeiro equívoco é que não houve
solidariedade dos países do Norte com os países do Sul.
Houve e ainda há, pois a Grécia
continua 100 por cento dependente do oxigénio europeu para se financiar. A
“xenofobia” contra a qual os mais exaltados se indignam traduziu-se em empréstimos
que uma parte desses mesmos exaltados sugere agora que não se paguem.
O segundo equívoco é que os povos do Sul
não tiveram culpa nenhuma naquilo que lhes aconteceu. Pelo menos nós não
tivemos. Não andámos anos a fio a gastar mais do que ganhávamos (nós país, já
nem falo do Estado). Não elegemos e reelegemos o sr. Sócrates. Não tivemos
bancos a emprestar dinheiro a amigos e a projetos megalómanos, por vezes por
ganância própria, por vezes por indicação política. Não andámos a comprar
Mercedes nem BMW. E não, não tivemos nenhuma culpa nisso tudo porque a culpa
foi dos bancos que nos deram crédito e da disciplina de outros europeus que fez
descer as taxas de juros. Não, não precisávamos de mudar nada no nosso modo de
vida, só precisamos é de reverter, reverter, reverter – e de consumir em vez de
poupar.
O terceiro equívoco é que tudo se
resolverá no dia em que, por fim, a Europa se decidir a ser mesmo “Europa”, o
que na cabeça de luminárias sem fim significa institucionalizar as
transferências de dinheiro da Europa do Norte para a Europa do Sul à conta de
“orçamento do euro” e de um “governo económico” comum que nos permitiria ser
uma espécie de imenso Mezzogornio, só que em vez de ser pago por Turim, Milão e
Veneza, seria pago por Berlim, Amsterdã e Helsínquia.
O quarto equívoco é pensarmos que só
há povos, e eleitorados, nos países do Sul da Europa, e que nos outros há
apenas deveres de “solidariedade”. Tudo o que não for isso é preconceito e
xenofobia. Não: para qualquer holandês calvinista, qualquer prussiano
protestante, qualquer bávaro católico, mesmo para qualquer português bem
formado, quem exige solidariedade tem obrigações. Quem tem dívidas, tem
dependências. Quem passa dificuldades tem de mudar de estilo de vida. E isso
“aplica-se a nível pessoal, local, nacional e, inclusivamente, europeu”, como
disse Dijsselbloem. Ou não?
O quinto equívoco é andar por aí a
dizer que são declarações como esta que fazem disparar as nossas taxas de juro.
Era bom que assim fosse, mas não é. Elas disparam porque a dívida é elevada, o
crescimento anémico e as poucas reformas que houve já foram ou estão em risco
de ser revertidas. Como escrevia a
semana passada a Helena Garrido a propósito de outro ódio de estimação dos
“indignados” profissionais, o ministro alemão das Finanças Wolfgang Schäuble
sabia do que falava quando nos disse para nos certificarmos de que não
precisamos de mais resgastes: é que estamos demasiado dependentes do BCE para
podermos dormir descansados.
O sexto equívoco é que toda esta
tempestade é apenas consequência das palavras inapropriadas de Dijsselbloem.
Não é. Ela traduz uma luta pelo poder na zona euro, não entre socialistas e
conservadores (apesar de estes já terem o presidente da Comissão, o presidente
do Conselho, o presidente do Parlamento e, agora, irem ficar com o presidente
do euro grupo), mas entre os que querem continuar a levar a sério as regras da
zona euro e os que querem sempre contemporizar. Recentemente António Costa congratulou-se por
ter a seu favor todos os principais dirigentes da zona euro, menos o presidente
do euro grupo. Agora vai deixar de ter esse problema – e nós sabemos o que isso
significa, não sabemos?
O sétimo e final equívoco, porventura
o mais trágico de todos, é pensar que vamos corrigir todos os males da Europa e
do euro quando houver uns líderes “com visão” e políticos “com dimensão”. Não
creio – mesmo parecendo certo que a Dijsselbloem faltam as duas qualidades, o
que já não poderá ser dito a propósito de Schäuble e muito menos de Merkel. O
que não impede que esta não tenha cometido erros, sendo que aquele de que
ninguém fala é, porventura, o que mais pesa nos tropeções que continuamos a
dar: não ter deixado a Grécia sair do euro na crise de 2015 (mas isso é um
debate que teremos um dia destes, pois o fantasma grego continua por aí…).
Deixem por isso em paz o cadáver do
senhor Dijsselbloem. Dá para escrever crónicas gongóricas, mas não nos ensina
nada. Pior: desensina. Porque na crítica à forma se esconde (desastrada) a
crítica ao conteúdo (correto). Porque à conta das palavras acaloradas de defesa
da honra das nossas mulheres e dos nossos hábitos de confraternização se
esconde o eterno discurso de que só por xenofobia não nos pagam as nossas
contas e as nossas dívidas. Mas a verdade é que se isso algum dia sucedesse
então é que a extrema-direita chegaria ao poder num ápice. Então é que a Europa
colapsaria mesmo.
PS. Já
agora: a próxima vez que um filho vosso (ou um irmão) que está em riscos de
chumbar o ano vos vier pedir dinheiro para ir “com a malta” para “a noite” na
véspera de um exame decisivo, passem-lhe logo o cartão do multibanco e o
respectivo código, não vá ele acusar-vos de “moralismo” e “preconceitos”,
talvez mesmo de “xenofobia”, porventura de “racismo” e “sexismo”. Como sabem,
assim ele irá longe na vida. Pelo menos tão longe enquanto durar o dinheiro do
cartão.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
22-3-2017
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