quarta-feira, 22 de março de 2017

Não há nada como um Dijsselbloem para pôr todos de acordo. Menos eu

José Manuel Fernandes

Toda a polémica em torno das palavras desastradas de Dijsselbloem não visam mais do que esconder o que muitos sempre detestaram: que com a solidariedade europeia viessem também deveres e obrigações.

A coisa mais fácil do mundo é bater em mortos – e Dijsselbloem é, depois da copiosa derrota dos socialistas holandeses nas eleições da semana passada, um cadáver político.

É ainda mais fácil bater em mortos quando eles fingem estar vivos e se põem a jeito, como Dijsselbloem se pôs com os seus comentários numa entrevista ao jornal alemão Frankfurter Allgemeine.

As redes sociais exultaram (as indignações ofendidas são a sua especialidade), editorialistas houve que lhe chamaram – e cito – “bronco racista”, outros de que lhes puxou para a veia poética e catalogaram-no como “parvo” e “ignorante”, ou ainda que alvitraram que a “caserna está mesmo a precisar de uma limpeza geral”.

De facto não há como um Dijsselbloem para nos pôr todos de acordo. Augusto Santos Silva e Paulo Rangel. Santana Lopes e António Vitorino. Carlos César e Isabel Pires. Nas redes sociais houve mesmo deputados de todas as bancadas que não se contiveram e gritaram contra o “traste”, o “lacaio” ou mesmo simplesmente o “parvalhão”. Tudo coroado com o próprio primeiro-ministro a considerar que Dijsselbloem foi “racista, xenófobo e sexista”.

Foi um fartote, talvez mesmo uma pândega. A honra lusitana foi lavada, o orgulho da pátria restaurado. Há muito tempo que não me recordo de tanta convergência num desígnio nacional: o de correr, depressa e se possível a pontapé, o holandês da presidência do Euro grupo. Até os socialistas lhe querem dar uma corrida em osso, ele que é socialista, e logo para colocar no seu lugar um conservador, o espanhol Luís de Guindos. Até o líder dos socialistas no Parlamento Europeu, o italiano Gianni Pittella, se juntou ao coro (o que levou alguns a recordarem que ainda recentemente a Grécia lhe outorgou cidadania honorária).

Como detesto unanimidades, vou fazer de desmancha prazeres. E começar por dizer o que devia ser óbvio: em abstrato, se não enfiarmos logo a carapuça, aquilo que Dijsselbloem disse não só é correto como é um princípio que aplicamos regularmente nas nossas vidas. Cito a frase na íntegra:

“O pacto na zona euro baseia-se na confiança. Com a crise do euro, os países do Norte na zona euro mostraram a sua solidariedade para com os países em crise. Como socialdemocrata considero a solidariedade extremamente importante. Mas quem a exige, também tem obrigações. Não posso gastar todo o meu dinheiro em álcool e mulheres e continuar a pedir ajuda. Este princípio aplica-se a nível pessoal, local, nacional e, inclusivamente, europeu.”

A imagem é infeliz e politicamente explosiva? Faz com que Dijsselbloem deixe de ter condições para presidir ao Euro grupo? Até concordo, porque em política o que parece é, e o que aquela frase parece dizer (mas não diz) é que no Sul da Europa andamos todos entretidos com álcool e mulheres. Mas eu, que mesmo tendo crescido num país católico tenho uma costela calvinista, percebo muito bem a relação entre solidariedade e obrigações. Talvez os calvinistas – e não há calvinistas como os holandeses – coloquem demasiada ênfase nas obrigações, mas a mim, como português, preocupa-me que gostemos sempre mais de empurrar a culpa para outros e esquecer o lado dos deveres e responsabilidades.

O episódio permite, no entanto, desenterrar, e por isso revisitar, muitos equívocos dos últimos anos.

O primeiro equívoco é que não houve solidariedade dos países do Norte com os países do Sul.

Houve e ainda há, pois a Grécia continua 100 por cento dependente do oxigénio europeu para se financiar. A “xenofobia” contra a qual os mais exaltados se indignam traduziu-se em empréstimos que uma parte desses mesmos exaltados sugere agora que não se paguem.

O segundo equívoco é que os povos do Sul não tiveram culpa nenhuma naquilo que lhes aconteceu. Pelo menos nós não tivemos. Não andámos anos a fio a gastar mais do que ganhávamos (nós país, já nem falo do Estado). Não elegemos e reelegemos o sr. Sócrates. Não tivemos bancos a emprestar dinheiro a amigos e a projetos megalómanos, por vezes por ganância própria, por vezes por indicação política. Não andámos a comprar Mercedes nem BMW. E não, não tivemos nenhuma culpa nisso tudo porque a culpa foi dos bancos que nos deram crédito e da disciplina de outros europeus que fez descer as taxas de juros. Não, não precisávamos de mudar nada no nosso modo de vida, só precisamos é de reverter, reverter, reverter – e de consumir em vez de poupar.

O terceiro equívoco é que tudo se resolverá no dia em que, por fim, a Europa se decidir a ser mesmo “Europa”, o que na cabeça de luminárias sem fim significa institucionalizar as transferências de dinheiro da Europa do Norte para a Europa do Sul à conta de “orçamento do euro” e de um “governo económico” comum que nos permitiria ser uma espécie de imenso Mezzogornio, só que em vez de ser pago por Turim, Milão e Veneza, seria pago por Berlim, Amsterdã e Helsínquia.

O quarto equívoco é pensarmos que só há povos, e eleitorados, nos países do Sul da Europa, e que nos outros há apenas deveres de “solidariedade”. Tudo o que não for isso é preconceito e xenofobia. Não: para qualquer holandês calvinista, qualquer prussiano protestante, qualquer bávaro católico, mesmo para qualquer português bem formado, quem exige solidariedade tem obrigações. Quem tem dívidas, tem dependências. Quem passa dificuldades tem de mudar de estilo de vida. E isso “aplica-se a nível pessoal, local, nacional e, inclusivamente, europeu”, como disse Dijsselbloem. Ou não?

O quinto equívoco é andar por aí a dizer que são declarações como esta que fazem disparar as nossas taxas de juro. Era bom que assim fosse, mas não é. Elas disparam porque a dívida é elevada, o crescimento anémico e as poucas reformas que houve já foram ou estão em risco de ser revertidas. Como escrevia a semana passada a Helena Garrido a propósito de outro ódio de estimação dos “indignados” profissionais, o ministro alemão das Finanças Wolfgang Schäuble sabia do que falava quando nos disse para nos certificarmos de que não precisamos de mais resgastes: é que estamos demasiado dependentes do BCE para podermos dormir descansados.

O sexto equívoco é que toda esta tempestade é apenas consequência das palavras inapropriadas de Dijsselbloem. Não é. Ela traduz uma luta pelo poder na zona euro, não entre socialistas e conservadores (apesar de estes já terem o presidente da Comissão, o presidente do Conselho, o presidente do Parlamento e, agora, irem ficar com o presidente do euro grupo), mas entre os que querem continuar a levar a sério as regras da zona euro e os que querem sempre contemporizar. Recentemente António Costa congratulou-se por ter a seu favor todos os principais dirigentes da zona euro, menos o presidente do euro grupo. Agora vai deixar de ter esse problema – e nós sabemos o que isso significa, não sabemos?

O sétimo e final equívoco, porventura o mais trágico de todos, é pensar que vamos corrigir todos os males da Europa e do euro quando houver uns líderes “com visão” e políticos “com dimensão”. Não creio – mesmo parecendo certo que a Dijsselbloem faltam as duas qualidades, o que já não poderá ser dito a propósito de Schäuble e muito menos de Merkel. O que não impede que esta não tenha cometido erros, sendo que aquele de que ninguém fala é, porventura, o que mais pesa nos tropeções que continuamos a dar: não ter deixado a Grécia sair do euro na crise de 2015 (mas isso é um debate que teremos um dia destes, pois o fantasma grego continua por aí…).

Deixem por isso em paz o cadáver do senhor Dijsselbloem. Dá para escrever crónicas gongóricas, mas não nos ensina nada. Pior: desensina. Porque na crítica à forma se esconde (desastrada) a crítica ao conteúdo (correto). Porque à conta das palavras acaloradas de defesa da honra das nossas mulheres e dos nossos hábitos de confraternização se esconde o eterno discurso de que só por xenofobia não nos pagam as nossas contas e as nossas dívidas. Mas a verdade é que se isso algum dia sucedesse então é que a extrema-direita chegaria ao poder num ápice. Então é que a Europa colapsaria mesmo.

PS. Já agora: a próxima vez que um filho vosso (ou um irmão) que está em riscos de chumbar o ano vos vier pedir dinheiro para ir “com a malta” para “a noite” na véspera de um exame decisivo, passem-lhe logo o cartão do multibanco e o respectivo código, não vá ele acusar-vos de “moralismo” e “preconceitos”, talvez mesmo de “xenofobia”, porventura de “racismo” e “sexismo”. Como sabem, assim ele irá longe na vida. Pelo menos tão longe enquanto durar o dinheiro do cartão.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador, 22-3-2017

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