Helena Matos
Esta é a lição que Sampaio nos
deu em 2004: em Portugal existe quem mande e os subalternos. Só percebendo essa
lição se entende o fenómeno Sócrates e a tolerância face a António Costa
“Fartei-me do Santana como
primeiro-ministro, estava a deixar o país à deriva – mas não foi uma decisão ad
hominem. Hoje faria o mesmo. De vez em quando é preciso dar voz ao povo – e
percebi qual era o sentimento do povo” – declara Jorge Sampaio segundo se
lê nos jornais e o próprio não desmentiu, no segundo volume da sua biografia
política, da autoria de José Pedro Castanheira.
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Jorge Sampaio, do Partido Socialista |
Estas declarações de Jorge
Sampaio ensinam-nos várias coisas. A primeira é que tudo isto lembra vagamente
uma conversa de café aparentemente incompatível com a imagem pública que foi
criada do antigo presidente da República: a malta farta-se, pá, e prontos!,
corre-se não com o gajo com que se joga às cartas – o Santana, estão a ver quem
é? – mas sim com o primeiro-ministro. Depois temos ali o toque de latim para
dar um ar institucional à coisa até que chegamos ao momento tarot-Belém:
“percebi qual era o sentimento do povo”. Assim devidamente informados quiçá
pela brisa que corre, pelo ar que se respira, pela água das fontes ou, como
faziam os antigos romanos, pela análise das vísceras das aves, Jorge Sampaio
antecipou as eleições pois afirma “De vez em quando é preciso dar voz ao povo”.
Onde nos levaria esta concepção do Presidente da República como alguém que
determina quando acontece esse “de vez em quando” em que se dá a voz ao povo é
um mistério que não chegámos a desvendar porque felizmente o mandato de Jorge
Sampaio chegou ao fim.
Enfim, tudo isto é deplorável
por si mesmo e no meu caso apenas confirma o que há muito penso sobre Jorge Sampaio:
o Presidente que após o 25 de Abril (o que inclui Spínola e Costa Gomes)
exerceu a suas funções de forma mais medíocre. Não é uma questão ideológica. É
uma questão de frontalidade, ou melhor dizendo da falta dela. É um entendimento
da Presidência da República como um espaço de gestão de oportunidades e
popularidades e não como um regulador de instituições.
Não por acaso Jorge Sampaio
foi o Presidente menos escrutinado, menos debatido e, numa linha que o aproxima
de Marcelo, apresentando-se e sendo apresentado com uma espécie de miss simpatia,
mas que enquanto sorri e diz coisas que valem tanto quanto o seu contrário,
torna em facto consumado uma interpretação não só alargada, mas também muito
questionável dos seus poderes.
Mas voltemos ainda às
declarações de Jorge Sampaio. Voltemos sobretudo àquele “Hoje faria o mesmo.” É
caso para perguntar: faria o mesmo com qual primeiro-ministro? Com o Santana
Lopes, claro. Porque a possibilidade de o fazer com um primeiro-ministro
socialista era nula, não era? Pergunto isto não por achar que Sampaio jamais
seria capaz de afastar um socialista pois, o que para o caso me interessa, é
que Sampaio nem sequer ousaria pensá-lo pois sabe muito bem que isso seria
politicamente impossível pela prosaica razão que jamais o PS toleraria que um
primeiro-ministro seu fosse tratado como Santana Lopes foi.
Na verdade Santana não seria
um extraordinário primeiro-ministro, mas não só foi substituído por outro bem
pior como ao aceitar-se que Santana Lopes fosse corrido daquela forma se deixou
implícito que a legitimidade dos primeiros-ministros em Portugal não resulta
apenas dos votos.
Esta é a lição que Sampaio nos
deu em 2004: em Portugal existe quem mande – a esquerda que para o efeito
obedece ao PS – e depois temos os subalternos que não vale a pena dizer que são
de direita porque na verdade eles vivem num não lugar que, por prudência,
definem como “não ser de esquerda”. Esse limbo ou não lugar que se define como
“a não esquerda” é por assim dizer o máximo intelectual e socialmente aceitável
em Portugal para quem quiser ser considerado civilizado, interessante,
solidário e sobretudo viver em paz com as redes sociais, a maçonaria e o mundo
mediático. A não esquerda pode existir, participar nas eleições, mas, sobretudo
quando está no poder, tem de admitir a sua subalternidade, penitenciar-se
quotidianamente e retirar-se ou deixar-se retirar assim que lhe fizerem um
sinal de que está a mais.
Veja-se como para a direita
foi um alívio que Sampaio a tivesse desembaraçado de Santana Lopes. A pátria
tremeu porque o dito Santana teorizou sobre os bebés e as incubadoras. Podia lá
ser um homem de Estado usar uma imagem dessas?! Em boa hora Jorge Sampaio
convocou eleições e passámos a ser governados por esse homem de Estado, por
esse líder incontestado, por esse primeiro-ministro galvanizador chamado José
Sócrates.
Naturalmente a mesma não
esquerda que viveu com fatalismo o afastamento de Santana foi incapaz de fazer
uma verdadeira oposição a Sócrates e até vivia no temor de que lhe ouvissem uma
palavra menos própria sobre os comportamentos impróprios do primeiro-ministro.
A isto junta-se que passavam a vida a lastimarem-se por não terem um líder tão
dotado quanto José Sócrates.
Não perceberemos nunca como
foi possível José Sócrates nem entenderemos como pode António Costa estar a
levar o país para uma nova crise com um espantoso riso na cara sem atendermos a
essa dicotomia entre governantes legítimos e subalternos que nos rege desde
2004. E sobretudo sem termos em conta que ser subalterno não só não se estranha
como se entranha.
Título e Texto: Helena Matos, Observador, 20-3-2017
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