sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Temer e os escravos

A lei destinada a reprimir a prática do trabalho escravo se transformou em mais um conto de horror do governo Temer

J. R. Guzzo

O público acaba de ser informado de mais uma crise – segundo diversos órgãos de comunicação e a conclusão geral dos artistas, intelectuais e filósofos consultados por eles, o governo do presidente Michel Temer decidiu permitir a volta do trabalho escravo ao Brasil. Porque raios o presidente iria fazer uma coisa dessas? Não parece, realmente, uma medida capaz de melhorar muito a sua popularidade, e se há uma coisa que Temer não precisa neste momento é ficar mais impopular ainda do que os institutos de pesquisa já dizem que ele é. 

Também não está claro o que haveria a ganhar com isso em dinheiro ou outras vantagens materiais. Será muito difícil, por exemplo, que venha a fazer palestras pagas sobre o assunto, ou que ganhe alguma condecoração, ou que receba aplausos na sua próxima visita à ONU. 

Mas tudo neste mundo tem uma razão, ou quase tudo, e prestando um pouco mais de atenção no que está sendo dito, dá para deduzir o seguinte: o presidente da República resolveu restabelecer a escravidão porque esse é o desejo, em massa, da Câmara dos Deputados – ou, pelo menos, dos 342 deputados que ele precisa ter a seu lado para escapar de uma segunda tentativa (ou terceira, ou quantas houver) de lhe cassarem o resto do mandato. Fica assim: vocês me seguram aqui na presidência e em troca eu dou a volta da escravatura. É o que estão dizendo, acredite-se ou não, os artistas, etc., com o apoio decidido das classes esclarecidas deste país.

"Escravos de Jó", tela de Ivan Cruz
Fica até mais divertido assim, mas infelizmente os fatos não são esses. Os fatos mostram que durante catorze anos, de 2000 a 2014, o Congresso Nacional debateu uma lei destinada a tornar mais rigorosa a repressão às práticas que obrigam as pessoas a trabalharem em condições vis – tão ruins que reduzem seus trabalhadores a condições equivalentes ou comparáveis às de um escravo. Os dois governos do PT que mandaram no Brasil durante a maior parte deste tempo todo – onze anos inteirinhos, de 2003 a 2014 – jamais mexeram uma única palha para fazer a coisa andar mais depressa, ou para a demora ser um pouco menos escandalosa. Tinham a sua famosa “base aliada”, fenômeno de “engenharia política” devido ao gênio do ex-presidente Lula. Tinham a chave do cofre. 

Tinham o poder que vem da capacidade de dar empregos, dirigir estatais, aplicar dinheiro de fundos de pensão. Mas não fizeram coisa nenhuma para levar adiante a lei que combate o trabalho escravo. Nem as lideranças do PT na Câmara e no Senado, nem as bancadas, nem os “movimentos sociais” – ninguém deu a mínima. Não há lembrança de nenhum discurso de Lula exigindo a aprovação imediata da tal lei. Dilma, então, até hoje não deve saber do que se trata. Estavam todos juntos, então, no paraíso da bancada “ruralista” e dos “campeões nacionais”. Jamais se ouviu um mísero pio de algum artista, “importante” ou não, a respeito do assunto. Estavam ocupadíssimos com a Lei Rouanet e a sua caixa-forte.

O atual Ministério do Trabalho, enfim, teve agora a ideia de regular com uma portaria as muitas coisas que a lei manda fazer – agora, dezessete anos depois do começo da história. Basicamente, a intenção é esclarecer o que é trabalho escravo e o que é trabalho em condições ilegais, já que as penas são diferentes para uma e outra coisa. Pelo que ficou escrito na lei que levou 14 anos de discussão até começar afinal a ser aplicada, é trabalho escravo obrigar alguém a trabalhar contra a sua vontade, manter o trabalhador preso, usar da força física para impedi-lo de sair do lugar onde trabalha – e, além ou em vez disso, submeter o empregado a condições degradantes de trabalho. Há outras particularidades, é claro – mas na essência é isso aí. 

A primeira parte é mais simples de verificar. A segunda, porém, já complica: o que são, exatamente, condições “degradantes”? Algumas estão na cara, de tão abjetas que são. Mas outras, muitíssimas outras, dependem da cabeça do fiscal – e aí, vamos parar de fingir durante uns dois minutos. Todo brasileiro sabe o que é um fiscal, e do que a sua cabeça e o seu bolso são capazes. No caso, trabalho “escravo” é o que eles dizem que é trabalho “escravo”, e o acusado que se vire – ou “acerte”. Se fosse solta em Roma, essa gente iria autuar o Vaticano.

O resultado é uma mistura grossa entre trabalho escravo de verdade e o exercício de atividades em desacordo com a Legislação Trabalhista, o que é completamente diferente. 

Para ficar num exemplo bem fácil de entender, a Folha de S. Paulo mencionou o caso de uma mineradora de Minas Gerais que foi autuada por “impor trabalho escravo “a motoristas que ganham 5.000 reais por mês, têm carteira assinada, férias, 13º em dia, adicional de férias e tudo mais que a lei manda fazer. Acontece que eles trabalham muitas horas extras, naturalmente por sua própria vontade e iniciativa. É claro porque fazem isso: as horas extras são muito bem pagas e os motoristas querem melhorar a sua renda. Mas a fiscalização decidiu que trabalhar horas extras em “excesso” configura trabalho escravo. Que se danem, agora, a mineradora e os motoristas. 

Se há algum problema, com esse e outros episódios semelhantes, bastaria acionar a Justiça Trabalhista, que tem mais de 3.000 juízes e quase 45.000 funcionários dedicados exclusivamente a cuidar de divergências no trabalho – mesmo quando não haja divergência nenhuma, como no caso acima. E se um procurador, auditor, ou seja, lá quem for achar que há? Pois então: que se acione a CLT, justamente. É disso que a lei aprovada para coibir o trabalho escravo precisa: lógica, e não histeria, demagogia e oportunismo.

Mas vivemos num ambiente onde está terminantemente proibido raciocinar ou lidar com fatos. O “Brasil Para Todos” ficou catorze anos dormindo em cima do trabalho escravo. De repente, a questão se torna gravíssima, tudo vira urgência urgentíssima e todo mundo vai para casa orgulhoso de sua coragem na luta contra a escravidão neste país. 
Título e Texto: J. R. Guzzo, VEJA, 19-10-2017
Marcação: JP

2 comentários:

  1. O Poder Judiciário deve intervir imediatamente nessa questão do trabalho análogo ao de escravo, concedendo já liminar no sentido de suspender a aplicação da recente Portaria do MTE Ministério do Trabalho e Emprego.
    Até para que a bancada ruralista venha entender que seus objetivos não serão alcançados.
    ANTONIO AUGUSTO.

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