terça-feira, 24 de outubro de 2017

[Aparecido rasga o verbo] Camuflagens de estrias e olheiras

Aparecido Raimundo de Souza

"De todas as criaturas de Deus, somente uma não pode ser castigada. Essa é o gato. Se fosse possível cruzar o homem com o gato, melhoraria o homem, mas pioraria o gato”.
Mark Twain

EU ME CHAMO TOB.  Sou um gato. Em inglês, cat; em italiano, gatto; em finlandês, kissa; em francês, chat. Sintetizando toda essa baboseira, não passo, apesar de miar em várias línguas, de um pequeno felino capeado por ranhuras e fendas, dos pelos bonitos, bem cuidados e magnificamente tratados. E por que não passo? Simples! A cútis se me pega (ou dito de outra forma, se me mostra) deformada pelo peso dos anos. Somado a esse probleminha de somenos importância, existe o fato de não gostar do meu nome. Nem um pouco.

Acho que Tob não pega bem para um doméstico da minha envergadura. Lembra alguma coisa esdrúxula, indiscreta e estapafúrdica. Sempre ouço as pessoas gritando por aí. “Enfia no tob dele”. Pois bem. Se eu pudesse mudar, escolheria uma identidade mais condizente, mais simpática, mais atraente, mais afeiçoada e compatível com a minha raça.

Embora enfurnado vinte e quatro horas dentro de uma casa ampla e confortável, com piscina, sala de jogos, academia e outros atrativos, e tenha por conta disso tudo uma existência maravilhosa, de rei, diria sem medo de errar, não sou desses bichanos obesos e desmazelados. Nem durmo no saco. Não caço ratos. Valha-me Nossa Senhora dos Gatos Existentes e também São Francisco de Assis, ambos protetores dos mazorros e irracionais.


Minhas refeições são de primeira e meus donos me tratam com produtos das linhas Whiskas ou Friskies, esse prato saboroso, por sinal, com atum misturado (amo atum), sem falar nos iogurtes desnatados, ovos cozidos, carnes bovinas, queijos, legumes, beterrabas, boa água, muito leite de vaca, enfim, produtos de primeira ordem, como se eu pertencesse à família. Aliás, me sinto um membro.

Como todos os mamíferos da Ordem Carnívora, faço parte do seio dos Felídeos caseiros. Nesse patamar, e do alto da minha situação privilegiada, posso dizer, de cabeça em pé, tenho vários amigos, porém, um em especial, me desperta cuidados e atenção. Esse pobre e infeliz a quem faço referência se abriga no coreto da praça aqui perto. Quase todos os dias, vem à varanda da sala e ali, longe de olhares curiosos, batemos longos papos.

Ele é um clandestino preto, tão negro que só se vê as cáries dos poucos dentes que ainda lhe restam, quando mia para algum consanguíneo que lhe cruze o rastro querendo roubar os restos de alguma sobra de comida. É, em resumo, o meu irmão, um preto pelado. Sem contar que não tem reputação, tipo não se sabe se é Siamês, Abissínio, Angorá, Persa ou Bombay.

Vive escondido, resguardado dos predadores, notadamente das carrocinhas da prefeitura. Apesar de lutar ferrenhamente pela sobrevivência, de sofrer na pele, uma espécie de bullying gatal (em vista das ocultações necessárias, para não ser pego, intimidado, ameaçado e agredido), traz o rabo de fora. Não tem o meu amigo, nome de batismo. Eu o chamo de Chico.  Chico um dia come, outro passa fome. Um dia bebe outro não.  De deu em deu, segue estrada afora, jogado à sorte, ao “quem me dará”, levando, empurrando para a barriga, ou impelido por ela a se ver respirando, no próximo minuto. 

Embora meu amigo seja um gatuno de primeira ordem, bem safo (safo aqui no sentido de esperto), a vida ingrata fez e faz dele, em todos os instantes, o que se conhece popularmente como “gato e sapato”. Quando comentei com ele, dias passados, a vontade férrea em trocar de nome, Chico se virou para mim, muito sério e convicto e argumentou com a sapiência dos animais que, embora sem um pingo de sorte nos costados, carregam uma larga experiência em face dos anos vividos em tormentas pelos escaldados do destino.
- Não vejo necessidade. Mas vamos em frente. Que nome gostaria de ter?

Depois de muito refletir nas ponderações que ele me apresentou, mandei bala.
- O que acha de Salem?
Meu amigo me fulminou, em discordância.
- Isso lá é nome de gato? Parece coisa de gato veado. O que me diz de Tom?
- Conheço um montão. Sem contar que existe um da nossa extirpe muito famoso. Lembra do Jerry da televisão? Se você berrar, por exemplo, Tom, aparecerá uns dez ou mais. O que me diz de Tim?
- Tim... raciocine comigo Tob.  Você acabaria virando alvo de piadinhas de mau gosto.

- Como assim?
- Seus amigos finos, moradores de outras casas aqui em derredor, lhe alcunhariam de mim, sim, quim, vim... imagine, “e aí, caríssimo Fim: Tudo bem?”.
- Verdade. Restaria, então, Bob.
- Bob, meu chapa, é nome de gato preguiçoso. E você não me parece nem um bocadinho com um molenga. Pelo menos na aparência. Vislumbro em seu porte vistoso e requintado, um modelo digno de Madame. Um espécime de prole esmerada, perfeita e airosa E o mais importante: ninguém troca você por lebre. Sua sorte além das sete vidas engloba o mais insigne e notável: Pedigree.


- Mesmo assim eu queria mudar...
- Felix. O que me diz?
- Nada a ver...
- Felix combina com feliz. Você é um gato feliz.
- Nem tanto, Chico. Nem tanto. Frajola?
- Frajola é um ser imensamente chato e trapalhão. Seu objetivo: comer o passarinho. Você não é chato, nem trapalhão. Nem aprecia pratos regados a passarinhos...
- Na mosca! Garfield?
- Sai fora, Tob. Garfield é gordo, preguiçoso, só come lasanhas e deixa seu amigo Odi em maus lençóis.

- Que coisa, Chico.  Só me restou da lista que preparei o derradeiro: Cheshire.
Risos e miados.
- O gato da Alice no País das Maravilhas? Não Tob. Cheshire é duvidoso e estranho. Além de pronúncia difícil. Prefiro Tob. 
- Que droga!
- Olhe amigo. Deixa de bobeira. Tira isso da cabeça. Procure se espelhar em mim, como linha de dedução.
- Como é isso de linha de dedução?
- Explico. Veja e não só veja, espie. Atente para a minha situação. Nem patronímico tenho. Sem falar num lar. Vivo ao relento, jogado em casa de orates, em busca de migalhas de comida e camundongos recém-saídos das fraudas. Na moral, colega. Preferiria mil vezes ser chamado de Tob e desfrutar de um cantinho só meu, de uma caminha limpa, cheirosa, que padecer assim, como um súplice, carente, precisando, como se diz ai no mundo dos humanos, “matar um leão a cada dia” para seguir respirando. Desculpe como concluirei meu modo e ver a coisa. Você chora de barriga cheia. Atalhando. Deus, meu prezado, Deus não dá azas às cobras.

Após isso meu amigo continuou a mandar para a barriga (sempre pausadamente e sem atropelos), o restante da suculenta ração que lhe servi. Sabia que depois de saciado, se prepararia para sumir do pedaço.
- Se eu estiver vivo, amanhã, volto para te ver. Obrigado por matar minha fome. Não fosse você...
- Nada a agradecer, Chico. Você sabe que faço por gosto. Quanto a estar vivo, teremos ainda muitos e muitos anos à frente. Um dia, por certo miaremos felizes diante de nossas namoradas.

- Namoradas? Você, quem sabe. Eu, jamais. Não conto muito com o ovo no fiofó da penosa. Ontem, quando vinha para cá, dei de supetão com uma gata de rua. Fifi. Linda, inimitável, bela, apesar de decadente e andrajosa. A raça não nega. É uma Sagrada da Birmânia. Fui olhar para o rabo dela, quase acabei atropelado por um motoqueiro. Se não estou atento, a essas alturas, me achariam estirado, duro, cheio de formigas estraçalhado, colado ao meio fio.
- Chico, pelo amor de Deus, tome cuidado. 
Chico se despede e sai alegre. Antes de sumir, de vez por cima do muro, acena. Acena e mia, compridamente. Então salta cantando, para o outro lado da sua solidão: “Eu sou um negro gato de arrepiar, e essa minha vida é mesmo de amargar...”.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. De Vila Velha, no Espírito Santo. 24-10-2017

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