Aparecido
Raimundo de Souza
MAL COMEÇA A NOVELA DAS NOVE, o telefone toca
insistentemente na sala do plantão. O
policial que está de serviço (assistindo num velho aparelho de televisão o
capítulo inédito), contra vontade e xingando horrores, acorre atender.
Alôaaa... boa noite!
Boa noite, cavalheiro.
De onde fala?
Polícia Civil.
Como é seu nome?
Anacleto. Policial Anacleto, às suas ordens! Em
que posso ajudá-lo?
Eu queria informar um caso de morte.
O senhor tem que ligar para a Polícia Militar. O
número é o 190. Lá eles lhe orientam...
Acabei de ligar.
E o que eles falaram?
Que não poderiam me atender. Que eu ligasse para o
197...
E então?
Desliguei o 190 e liguei para o 197. No 197 o
senhor me atendeu e, nesse momento...
O policial parece cansado. Suspira. A novela...
fala.
Que espécie de morte, cavalheiro?
Não tenho bem certeza, acho que matada.
Homicídio?
Risos.
Homi... homi o quê?
Homicídio.
Veja bem, seu... como é mesmo a sua graça?
Anacleto. Policial Anacleto.
Seu Anacleto policial, digo seu policial Anacleto
é o seguinte. O cara apareceu morto,
aqui da rua, em meio a uma poça de sangue. Tá aqui o corpo estendido, inerte,
coberto com alguns jornais velhos e pior, atrapalhando o trânsito. Sem falar
nos curiosos com seus celulares em derredor do defunto, filmando, tirando
fotos, postando nas redes sociais, etc.
Que mais?
Uns e outros são mais espertos. Tentam aliviar o
morto.
Aliviar o morto? Como assim? Seja mais claro.
Roubando, seu moço. Levaram o relógio, a pulseira, o cordão e até
o anel...
O senhor tem certeza que o falecido está realmente
morto?
Tenho, ora bolas.
Ok. Fique calmo. Veja bem, cidadão. O senhor terá
que ligar para o IML. Esqueça a Polícia Militar. Esqueça a polícia civil. Seu
caso é IML.
E qual é o telefone desse tal de IML?
Um minuto, por favor.
Passam doze cravados.
Alôaaa?
Estou na escuta.
Anota aí, por favor. IML: 3239-5871.
Devagar, seu policial. Poderia repetir?
3239-59... perdão... 58...71.
Se importaria em falar mais espaçadamente?
Farei melhor. Soletrarei. Três... dois... três...
nove... cinco... oito... sete... um. Pegou?
Não, cavalheiro. Sou meio lerdo: 3239... 59...
Não, cidadão. Cinco... oito... Cinco... oito...
sete... um.
58...71. Obrigado.
Oito minutos depois, nova tentativa.
Boa noite. Não me leve a mal. Sou eu de novo.
Boa noite. Eu quem?
Acabei de falar com o senhor.
Ah tá. Diga, meu caro senhor. Em que posso ajudar?
De onde fala, por obséquio?
197. Polícia Civil.
E o senhor, quem é?
Policial Alcides, às suas ordens.
Liguei pra vocês, não tem muito tempo para
comunicar uma morte. Falei com... falei com...
Isso não tem importância. Quem é a vítima?
Não sei informar, senhor.
Não é seu parente?
Não senhor.
Amigo, vizinho, desafeto?
Nenhum deles.
Bandido, ladrão, assaltante...?
Pelo amor de Deus, meu amigo. Como é mesmo seu
nome?
Alcides. Policial Alcides.
Pois então, seu policial Alcides, tem um morto
aqui na minha rua... e...
Não estou entendendo. O senhor disse que ligou
para a Polícia Militar, no 190, não ligou?
Perfeitamente. Lá me mandaram acionar o 197.
197?
É.
O senhor não tem que ligar para o 197 e, sim, para
o 190.
Meu Pai Eterno! Não disse para o senhor que
liguei? Eles me informaram que o morto não é problema deles.
E de quem é então?
Do 197. Ou seja, o presunto é com vocês.
Como, com a gente? Impossível. Do que morreu o
sujeito?
Não sei precisar...
Como sabe que está morto?
Bem. Faz duas horas e meia que o fulano está
estirado num canto da rua, com a cabeça no meio fio, mesma posição, sem se
mexer. Sequer deu um espirro ou tossiu. Formiga em cima dele, chega a fazer dó.
Outra coisa: tem uma pá de gente em volta que pode corroborar o que estou
dizendo. Sem falar no trânsito meu amigo. Caótico. Resumindo, senhor: creio que
o infeliz apagou os filamentos.
Tudo bem. Espere um instante.
Pois não.
O instante pedido se prolongou por dezenove
minutos.
Meu prezado.
Sim.
O senhor tem que ligar para o Corpo de Bombeiros.
O telefone é 193. Eles, com certeza, providenciarão o resgate da vítima.
Que vítima, meu senhor? O sujeito bateu as botas.
Ou alguém bateu para ele, sei lá. Foi prás cucuias. Está morto. Mortinho da
silva. Esticou as canelas...
Esticou as canelas. Perfeito. Então resumindo,
está morto?
Foi o que falei: morto. A não ser que finja com
muita perfeição.
Pois bem. Não importa. Anote o IML. 3239-5871.
Acione, por favor, imediatamente o IML. Eles mandarão um rabecão.
Mandarão o quê?!
Um rabecão.
Que diabo é isso, policial. Como é mesmo seu nome?
Prezado, não importa meu nome. Liga para o IML.
Eles vão mandar um rabecão. Rabecão é um carro nosso aqui da polícia que serve
exclusivamente para apanhar os defuntos no meio da rua.
O IML ou o Corpo de Bombeiros?
Conselho de um bobo? Se eu fosse o senhor, me
comunicava logo com os dois. Só por precaução e descargo de consciência.
O tempo voa. Dois minutos escorrem pelos dedos.
Desculpe, por favor, a encheção de saco. Aí é do
193?
Não, meu senhor. Aqui é do 192.
192?
Sim. Em que posso ajudá-lo?
O que é o 192?
SAMU. Serviço de Atendimento às Moças Ultrajadas.
Como é que é?
Desculpe senhor. Aqui é do SAMU. Serviço de
Atendimento Móvel de Urgência.
Vocês tem ambulância?
Para remoção?
Sim, senhorita.
Quem é a vítima, senhor?
Não sei o nome, a idade, se trabalha ou estuda...
não sei, na verdade, nem onde mora...
Bem. Nesse caso... o senhor vai ter que pagar a
remoção.
Pagar?
Sim. É necessário fazer inclusive, uma caução
antecipada. Pode ser cheque, dinheiro ou cartão de crédito. Vale transporte, ou
refeição, infelizmente, não estamos mais aceitando. Os tickets que recebemos
anteriormente chegaram até nós com cheiro de mofo. Imagine a situação! Estavam
estragados. Bem, vamos ao que interessa. Qual será, por favor, a sua opção?
Dinheiro, cheque ou cartão?
Senhorita entenda. Tem um cadáver na minha rua, a
dois metros de minha casa.
Um cadáver, senhor?
Foi o que eu disse. Um presunto.
Presunto ou cadáver?
Um corpo...
O senhor, por acaso o conhece?
Nunca vi mais gordo.
- Tentou
ligar para a delegacia de polícia de plantão? Quer o número?
Não senhorita. Agradeço. Antes de ligar para seu
número, falei com a polícia várias vezes.
E o que eles disseram?
Não disseram. Eu disse: “vá para os quintos do
inferno!”.
Credo! Que falta de educação...!
Quinze minutos do último evento, nova tentativa.
Polícia Militar, boa noite.
Sou eu de novo. É sobre o cadáver do cara que
morreu.
Quem morreu?
O cadáver... quero dizer... um sujeito morreu...
e...
Não foi o senhor que ligou para cá ainda pouco?
Foi. Liguei sim.
Não orientei o senhor para acionar o 197?
Eu sei... eu sei...
Tenho uma ligeira impressão que o cavalheiro está
brincando.
Eu, brincando?
Isso mesmo que acabou de ouvir. O senhor está
passando trote. Sabia que pode ser punido, por isso? Estamos com seu número
identificado em nosso bina. Confira.
555-59-88.
É o número de minha residência.
Por favor, quem é o senhor?
Miércoles. Jean Carlos Miércoles.
Como se escreve Miércoles?
Escrevendo, ora bolas.
Tá me tirando? Sem brincadeira, por gentilza,
soletre.
Eme... i... é... acento no é... erre... ce... o...
ele... e esse. Nesse. M... i... é... r... c... o... l... e... s, o primeiro é como disse no início,tem um
acento circunflexo em cima.
O senhor é descendente de alemão?
Não. Sou filho de italiano.
E o que significa Miércoles?
Quarta.
Que quarta?
Meu sobrenome: Jean Carlos Miércoles.
Seu Jean Quarta...
Jean Miércoles.
Seu Jean, por favor, me informe seu endereço
completo.
Com prazer: Rua das Assadinhas, nº 18 Casa 10.
Bairro das Macacas.
Seu Jean, escute com atenção. Uma viatura estará
parando em sua porta. O senhor deverá acompanhar o policial munido de todos
seus documentos pessoais.
E para quê?
O senhor será conduzido para a DPJ do seu bairro.
E para que tenho que ir até lá?
O senhor está brincando. Passando trote. Será
conduzido à presença da inspetora e do delegado, para prestar esclarecimentos.
Devo alertá-lo que o trote que o senhor está passando, é crime. Esse tipo de
gracejo é punido pelo Código Penal. Ligar para o número 190 para fazer
pilhérias dá cadeia. Aguarde na linha, por favor.
Menos de cinco minutos transcorridos, Jean
realmente se acha sentado numa das salas da delegacia de plantão a meio
quarteirão de sua casa. Motivo alegado pelo policial que veio até sua
residência. Provar que acionava o 190, o 197, entre outros, efetivamente para
comunicar que “um corpo fora achado em sua rua”. E o cadáver?! Continua no
mesmo lugar, cheio de moscas, formigas passeando, gente tirando fotos. Sem nada
para fazer em sua própria causa, o
anônimo “de cujus” espera. Aguarda,
pacientemente pela boa vontade, pela caridade alheia. Confia, apesar de ter
passado desta para melhor, que alguém... uma boa alma, se compadeça e ligue,
como fez o Jean para o 190, 197 e 192.
Na verdade, o sem vida só precisa de um rabecão que lhe dê uma carona até o
IML.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza. Do Mercure Hotel, em Alexanderplatz, Berlim, Alemanha.
Na festa de comemoração dos 28 anos da derrubada do maior símbolo da Guerra
Fria: o Muro de Berlim. 13-10-2017
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