quarta-feira, 4 de outubro de 2017

[Aparecido rasga o verbo] Barril de pólvora

Aparecido Raimundo de Souza


CHEGOU EM ITAPIRANGA, cidadezinha no extremo oeste de Santa Catarina, e divisa do Brasil com a Argentina, o novo pároco, para assumir a posse e o curato da Paróquia de São Pedro Canísio. No domingo de manhã, a Rua Uruguai onde está edificada a igreja não se tinha por onde andar, de tanta apinhação de gente. Sem falar no interior da nave, que, igualmente se encontrava superlotada para a celebração da primeira missa, não só com brasileiros, mas a maioria com argentinos, que atravessaram o Rio Uruguai e o Peperi-Guaçu e vieram fazer compras e visitar parentes.

A mulherada do pedaço (tanto as solteiras, como as casadas) estava eufórica e marcava presença bastante acentuada por dois bons motivos: o padre, indicado pela Diocese de Chapecó, tinha sangue de garotão e as ninfetas queriam ver, de perto, a sua cara. O outro motivo que balançava a cidade: comentavam que a criatura era capaz de botar qualquer galã de televisão nos bolsos.

Por essa razão, todos os assentos foram sumariamente ocupados, com gente vinda das bandas do Rio Grande do Sul, Tunápolis, Mondai, Santa Helena, Pinheirinho do Vale e Barra do Guarita. Depois daquele velho ritual cansativo das missas dominicais, dos cânticos, começou o sermão.
- Caríssimos irmãos, vamos nos debruçar no evangelho de Mateus, mais precisamente no Capítulo 23, onde Jesus fala aos fariseus, como estou falando agora, a estes argentinos que vieram assistir a santa missa...

O constrangimento caiu na platéia como um caldeirão de água gelada. Os argentinos se levantam imediatamente e, um a um, foram saindo com raiva e ódio diante do insulto proferido pelo jovem sacerdote. O prefeito diante desse quadro desolador, e pensando, sobretudo, nas duas lojas e no restaurante de sua propriedade onde trabalham seus parentes e protegidos, correu a conversar com o religioso, tentando acalmar os ânimos:
- Padre, em nome do Todo Poderoso, não faça mais isso. Os argentinos são uma fonte de renda para a cidade. Eles gastam nas nossas lojas, nos nossos restaurantes, trazem divisas, ajudam a nos tornar mais ricos, fortes e prósperos. A Associação dos Motoristas foi construída graças a eles.

O representante de Deus na terra concordou em suavizar o discurso. No domingo seguinte, a igreja voltou a ficar apinhada, com gente saindo pelo ladrão. Chegou a hora do sermão:
- Irmãos, estamos mais uma vez aqui reunidos e hoje falaremos de uma pessoa muito importante na Bíblia: Maria Madalena. Uma pecadora e prostituta que tinha sete demônios e vivia para atentar Jesus, como as argentinas que aqui estão...

Momentos de pânico e terror tomam conta do ambiente. Maridos argentinos se levantam dos bancos, revoltados, e partem para o altar a fim de agredir o reverendo. Entra em ação a turma do deixa-disso, tentando pôr fim à turba desenfreada disposta a fazer pedacinho do vigário. As mães argentinas saem, aos prantos, carregando seus rebentos. Mais uma vez o prefeito como bom samaritano, intervém tentando evitar uma tragédia de maiores proporções:

- O senhor não disse que iria pegar leve? Entenda bem: se essa gente se for daqui nossa cidade morrerá, entendeu? Se os argentinos nos virarem as costas, estaremos fudi... perdão, padre, falidos... pelo amor de Deus, manere. Vá mais devagar. Se não gosta deles, se por qualquer motivo guarda rancor desses infelizes, procure não demonstrar publicamente ou estaremos condenados ao caos total. Leve em conta que Itapiranga é um cu de mundo. Conseguimos erguer o Museu Comunitário graças a... deixa pra lá.

O religioso se desculpou. O juiz de direito da cidade aproveitou a ocasião e entrou no bate-papo e deu o recado em tom ameaçador:
- Não quero chegar a este ponto, mas se o senhor continuar a insultar os argentinos e não abrandar o tom das suas falas serei obrigado a escrever uma carta à Diocese de Chapecó e outra ao bispo de Florianópolis e, se eles não me derem ouvido, irei ao Papa, em Roma, relatando o ocorrido e pedindo sua transferência para uma cidade, de preferência bem longe daqui. Veja bem: não é o meu desejo, mas não terei outra escolha.

O sacerdote jurou de pés juntos que mudaria o rumo da sua prosa em relação aos vizinhos do outro lado do enorme Rio que corta a cidade.
O outro domingo chegou voando. A igreja voltou a ficar lotada, tendo em vista o trabalho de catequese realizado pelo prefeito e seus seguidores, durante o decorrer da semana. Praticamente o político - que em suas peregrinações se fez acompanhar da primeira dama – foi de casa em casa.

De outro, o futuro candidato à prefeitura, também usou do mesmo expediente e saiu batendo de porta em porta (do lado de cá procurando se desculpar em nome do imbecil do padre sem noção).  Da banda não brasileira do rio, os vereadores prometeram aos “hermanos”, solenemente que o novo representante eclesiástico recém-empossado não mais tocaria em assuntos desagradáveis como aconteceu nos domingos anteriores.

Para descargo de consciência, o prefeito, precavido, resolveu assistir à missa. E o fez sentado confortavelmente ao lado do celebrante na sacristia. Convidou o juiz, o presidente da câmara, um representante da Rede Peperi de Comunicação, bem ainda os vereadores para tomarem assentos nas primeiras fileiras, só para fazer pressão. Logo atrás, estavam o delegado de polícia e todo o efetivo de detetives lotados na delegacia local para prender o padre, se fosse necessário.

Emparelhado ao delegado, o sisudo capitão da polícia militar, igualmente de prontidão e em alerta geral, com um batalhão de soldados perfilados fora do recinto, prontos, todavia, para entrarem em cena caso o padre se excedesse e alguém resolvesse partir para a selvageria.

Depois do blá-blá-blá de sempre, chegou a derradeira hora do esperado sermão:
- Irmãos, mais uma vez estamos reunidos na casa de Deus para falarmos de um dos momentos mais importantes da vida de Jesus Cristo: a Santa Ceia...
O tema abordado deixou o prefeito tranquilo. Chegou a sorrir para o juiz e este fez um sinal de positivo ao delegado e ao capitão. Parece que os problemas haviam chegado ao fim.

- Jesus, naquele momento, disse aos apóstolos: “Esta noite, um de vós haverá de me trair”. Diante dessas palavras Paulo levantou-se e indagou a Jesus: “Mestre, serei eu?”. Jesus, olhando firme para ele, respondeu com candura: “Não, Paulo, não serás tu”. Pedro também se levantou e questionou o Senhor: “Mestre, por acaso desconfias de mim?”. Jesus voltou os olhos para Pedro e sem perder a majestade da voz, o acalmou: “Não, Pedro, não serás vós”. Foi a vez de Tiago inquirir o Mestre: Senhor, não achas que eu teria coragem...?”.

Jesus sem perder o sorriso franco que trazia estampado no rosto muito vivo virou-se para Tiago e o confortou: “Não, Tiago, não sereis vós”. Então foi chegada a vez de Judas, que se pôs de pé, fitou Jesus bem dentro dos olhos com arrogância e altivez e mandou o questionamento: “Mestre, quiero saberlo: soy yo?!”.

Tiveram que retirar, às pressas e às carreiras (numa turma de cinco parrudos fortes, tanto de braços, como de pernas), o sacerdote pelos fundos da igreja, fortemente escoltado (disfarçado, todavia de confessionário), ou seria morto perto do altar. Com certeza, conforme foi noticiado pelo representando da rádio local, “com a turba em calamitosa polvorosa, nem São Pedro Canísio daria jeito nos estragos que pretendiam fazer no religioso”.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza. De Brasília, Distrito Federal. 3-10-2017

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