Aparecido Raimundo de Souza
“As crianças crescem tanto, e continuam tão
jardim, mas tão jardim na tarde rubra”.
Carlos Drummond de Andrade
MINHA FILHA AMANDA observou,
no supermercado, um garotinho dentro de um carrinho abarrotado de compras e
indagou muito séria e perplexa:
- Pai, aqui tem criança pra
vender?
Sorrio de uma ponta a outra da
orelha a essa observação enxerida, ao tempo que tentava explicar que aquele
guri não se constituía em objeto de comercialização.
- Os pais o colocaram naquele
lugar – Argumentei à guisa de explicação – para que se distraia com o volante
daquele fusquinha adaptado, enquanto seus pais percorrem os imensos corredores
em busca das prateleiras com mais calma e atenção, à cata dos alimentícios que
se acham em promoção. Puxado pela mão,
igual eu faço agora, com a senhorita. A nossa caminhada se torna excessivamente
lenta. Em contrapartida, cai por terra o medo mórbido e constante de perder seu
sorriso bonito e contagiante entre essa galera em polvorosa.
Amanda, por natureza, sempre
se mostrou irrequieta demais e sapeca. Em vista disso, se não tivesse colado
nela, se soltasse a bichinha no meio de centenas de cabeças indo e vindo, sem
contar as pirâmides intermináveis de aparelhos eletrodomésticos, me veria em
palpos de aranha. Meu receio maior, sinceramente, a de que a danadinha
escapasse da minha linha de ótica. Aconteceu isso uma vez, num parque de
diversões, e eu me vi literalmente débil e em sobressalto.
- Pai, você está mentindo.
Aquele piá dormia na prateleira onde vende um montão de brinquedos pra gente do
meu tamanho. O homem feio “pegou ele” pelo braço e botou no carrinho. Agora o
coitadinho não vai mais poder ver a mãezinha dele quando tiver com medo do
bicho papão...
Minha eterna Polly Pocket
permaneceu alguns minutos em silêncio, séria, pensativa, circunspecta. Nessas
horas, como válvula de escape, metia o dedinho polegar esquerdo na boca e
chupava:
- Pai, vamos até ali achar uma
menininha igual a mim?
E para que você quer uma
menininha igual a você?
- Para brincar comigo. Vamos
fazer de conta que somos marido e mulher. Então...
Sorrio, de novo, a bandeiras
despregadas com essa nova observação bucólica e docemente écloga e pastoril.
- Espere um bocadinho. Para
brincar com você, tudo bem, mas de marido e mulher, não dá.
- Por quê?
- Para brincar de marido e
mulher eu teria que arranjar um pequerrucho igual ao que vimos a pouco naquele
carrinho. A partir desse ponto sim, você seria a mãe e ele, por exemplo, o pai.
- E o neném?
- Neném? Que neném?
- Ué, todo marido e mulher não
ganha um neném que vem lá do céu? Você não casou com a minha mãe e me ganhou da
cegonha que me trouxe num bico desse tamanho? E depois a Lulu?
Um casal de idosos que cruzava
para o setor de limpeza, ouvindo a conversa, por instantes, deteve os passos:
- Inteligente, a mocinha!...
Virando-se para Amanda, a
setentona ofereceu a ela um pacotinho com um monte de pirulitos e balas
sortidas.
- O que falamos quando alguém
nos dá alguma coisa?
- Deus lhe pague?
- Não.
- Muito obrigada?
- Sim senhora.
Os velhinhos retornaram à
caminhada. Antes de evaporarem de vez, a filantrópica senhora se voltou e
acenou com um beijo.
Com a boquinha suja do doce
que ganhara, minha rainha seguia atenta. Queria saber o que era isso, para que
servia aquilo. Mexia aqui, desarrumava as caixinhas das pastas de dentes; pedia
um sabonete para a mãe, e uma melancia para a irmã Luana, que não viera porque
preferiu ficar dormindo.
Amanda adorou de babar aquela
maquininha de conferência de preços. O bip a divertiu, sobremaneira. Perdi a
conta das vezes em que a ergui no colo, com um objeto entre as mãos em concha
para que encostasse o código de barras e o valor aparecesse no visor.
- Cinquenta mil, papai.
Cinquenta mil. Nós vamos levar?
- Se você quiser...
- Eu quero.
Eis que, acidentalmente, em
meio ao afluxo interminável de encontros e empurrões, choques de carrinhos e
pedidos de desculpas, diante de nós, surgiu como um desvario delirante, o
impecável e chamativo espaço destinado aos infantes. De todos os lados bonecas
as mais diversas, de rostinhos belos e perfeitos, rechonchudos e alegres – a
preços, contudo, de deixarem qualquer pai por mais coruja que seja com os
bolsos - e não só eles, os nervos à flor do desespero. Amanda se viu
transportada imediatamente para um mundo de consumação alucinante, apesar da
sua pouca idade. Berrava, a plenos pulmões:
- Pai, eu quero aquela...
A minha Barbie apontava o
indicador em riste para uma caixinha colorida envolta em plástico, não muito
maior que uma garrafa de refrigerante desses de um litro e meio.
- Você compra? É a Susi!
Não é linda, papai, não é linda? É a Susi!
Você não queria as sandalinhas
da Xuxa?
- Não, papai, “essa” eu ganho
depois, da Tia Milinha. Agora você compra a Susi. Você compra?
Ao meu olhar de poucos amigos,
a minha cinderela, de repente, emburrou e amuou. Tanto choramingou e esperneou
que acabei cedendo, submisso, aos desejos e mandando a vendedora embrulhar a
tal da Susi. Fazia tempo que não vivia um minuto tão comprido. Sem contar que a
Susi, valha-me Deus, nossa senhora, somava uma grana violenta.
Sabia perfeitamente que essa
extravagância forçada pesaria deveras, no orçamento. Tinha que concordar,
entretanto, quase que de pronto, em minha estupefata impotência, com aquele
sujeito que, numa dessas manhãs de domingo, num programa de televisão, falara
uma coisa simples, mas de significação profunda: “mais vale gastarmos alguns
trocados com o encantamento dos nossos filhos, ainda que à duras penas, do que
jogarmos, pelo ralo, uma grana considerável em remédios, depois de termos
enfrentado a dor melancólica de um corredor sombrio de hospital”.
No pátio do estacionamento uma
lembrança me veio acudir à memória com a rapidez de um relâmpago eixado a forte
temporal. Essa lembrança chegou tão inaudita e desmesurada, como uma grade de
ferro se projetando, para frente, diretamente sobre minha cabeça. Fechei os
olhos e me farejei parado, como um dois de paus, entre o carrinho de compras e
o porta malas do automóvel:
- Espera aí. Se eu lhe dei a
Susi, temos que pensar no que levaremos para a Luaninha...
- Acho que ela quer a
bonequinha da Carla Perez gritou - Amanda num arroubo imediato e sem qualquer
preliminar.
- De quem?
- Da Carla Perez!
- Quem é essa pessoa, gatinha?
– indaguei pressuroso e totalmente alheio a minha santa ignorância – Alguma
coleguinha de escola?!
- Não papai. - completou a
linda, as pupilas brilhantes de uma cintilação incomum. - Carla Perez é aquela
moça do “Ticham”.
***
Voltamos sem perda de tempo e
sem mais delongas nos calcanhares e compramos a esfuziante Carla Perez.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza. De
Brasília, Distrito Federal. 22-9-2017
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