Aparecido Raimundo de Souza
“Que saudades da professorinha, que me ensinou
o bê-á-bá”.
Ataulfo Alves, cantor e
compositor.
NÃO ERA O SORRISO DELA, meio
felino, os dentes perfeitos à mostra, as faces coradas, os olhos brilhantes,
que o entusiasmava, que o acalorava que o embalava que o tirava literalmente do
chão. Nem as letras de sua mão direita desenhando frases no correr do giz
branco sobre o escuro da lousa negra da enorme sala de aula. Não eram os
colegas que ocupavam as carteiras ao seu derredor, os piercings grudados nos
ouvidos e narizes, as tatuagens inescrupulosas, nem as moças de tranças
coloridas, suas saias curtas e justas mostrando, além dos joelhos, formas
pecaminosas com calcinhas fantásticas recheadas com desenhos de borboletas e
frases de duplos sentidos.
Nem mesmo a paisagem aprazível
e airosa, que entrava abundante, espessa, e opulenta, com o sol gostoso e
desenhava silhuetas engraçadas nas paredes imundas, junto com o vento calmo da
manhã tranquila tirava a sua concentração. Não era o metro e sessenta e três de
altura que o encantava nela, nem os cabelos lisos e longos, descendo em forma
de cascata, pejados de fios loiros e brilhantes até a exuberância da cintura
fina e bem proporcionada.
Tampouco o jeito simples e
bucólico de mocinha do interior, ou os gestos delicados com que se dirigia a
quem dela se aproximasse. Não era, igualmente, a maneira sutil de como
carregava a bolsa, o apagador, a caixinha de giz, as provas que aplicava todas
as sextas-feiras e os diários de classe.
Não era a mesura angelical,
nem os lábios carnudos, ou a boquinha perfeita, pronta para ser beijada. Não
era, consequentemente, o vigiar aos alunos, pautado, numa imagem fidalga, nem a
sequência de pequenos gestos (nessa hora acelerados) que mexia com seu coração
de homem solitário. Não era a fluidez magnética que explodia de dentro de sua
alma, nem o beliscar das horas que parecia fazer a saliência do seu andar, ou a
sedução intermitente do seu compasso moderado e espaçado no ir e vir da pausa
para o café (até onde instantes depois, ministraria outras aulas de português
no decorrer do restante do dia) que realmente o deixava nervoso, aguerrido,
insolente, fora de si, à mente turbilhonada, contente e feliz como um
camundongo em cima de um queijo imenso.
Se não a soma de tudo isso, o
que fazia, então, aquele aluno idiota se sentir fraco, confuso e indeciso,
capengar das próprias pernas, como se tivesse medo de se mostrar por inteiro? O
que fazia seus pensamentos se amontoarem, ou se entrelaçarem como um emaranhado
de fios e linhas? Seria a poesia viva e sem contornos que emanava dela? Ou,
lado outro, o amor que vinha de dentro de seu âmago que o enfraquecia,
petrificava, seus movimentos e o amarrava estarrecido e apatetado, como um
menino bobo diante de um brinquedo cobiçado visto numa vitrine? Talvez, quem
sabe, um objeto raro, valoroso, que não poderia ser tocado, porque estava fora
do alcance de seus desejos de criança?
O que o deixava enlouquecido,
doido, quase varrido, a ponto de chegar mais cedo todos os dias e deixar, sem
que ninguém visse, uma rosa vermelha (que roubava do jardim de um vizinho perto
de onde morava), ou se levantar durante a aula e, discretamente, jogar na mesa,
escondido, em meio às coisas dela, um bilhetinho escrito “Te amo” formas sem pé
nem cabeça de demonstrar o tamanho da paixão que nutria por aquela deusa
intocável? Por Jesus, de onde vinha aquele amor arrebatante, calcinado,
abrasado, que inundava toda a sua alma e fazia a esperança virar festa com
música alta tocando sem parar? O que o fazia tentar engolir uma dor forte e
convulsa que persistia em subir pela garganta?
Depois que ela chegava a sua
alma se abria em esperanças. Como se fosse feito de matéria plástica, todo seu
eu se derretia. A presença dela, ali na escola (não só ali, em qualquer lugar
que a visse fosse no aconchego de sua casa, na rua, na praça, na missa de
domingo, no shopping, no salão do cabelereiro cuidando das unhas, fazendo
compras no supermercado, sempre sozinha, desacompanhada, sem ninguém para
dividir a sua solidão), se assemelhava as labaredas de um fogaréu que queimava.
A brasa que fundia os corpos,
o universo proibido que ele tanto almejava o momento inventado e esperado, a
graça completa, o espectro dos prazeres se insinuando em vendavais de idílios,
como se esperasse o instante mágico e perfeito, para ser engolido, sugado,
mastigado por sua boca de dentes famintos. Sua concentração nela se fazia
intensa, acirrada, fora de tom. Percebia qualquer mudança de humor, conhecia
cada músculo, saberia dizer quando estava alegre ou infeliz. Nela havia às
vezes, uma impressão de premência na maneira como trabalhava, como se portava,
como se dirigia às pessoas. Ela cultivava, talvez sem saber, no quase terminar
de uma aula e outra, uma pressa de tudo ansiosa, de excitamento reprimido.
Na pausa do horário previsto
na carga escolar, no bater do sino, o término do sonho, seguido da espera
degradante, desfocada e infeliz até o dia seguinte para tornar a vê-la,
inteira, sentir seu cheiro, usufruir do seu perfume, perscrutar seus medos e
incômodos. Sentir, de novo, seu corpo, tocar suas partes mais íntimas com os
afogueios de um adulto indulgente, comer suas entranhas com o silêncio dos
apaixonados, ouvir o coração aflito, em pânico, pedindo socorro, ajuda e
atenção... sobretudo a-t-e-n-ç-ã-o.
Todavia, ele era um simples
aluno. Um João Ninguém. Como os demais que compunham as quarenta cabeças
daquela turma. Não podia ultrapassar as interrogações que turbilhavam, nem
jogar a carroça diante dos burros. Talvez, no estágio seguinte – quem sabe um
dia, ela o notasse, ali, quieto, parado, estatelado, olhando, crescendo -
morrendo de amor, de paixão, de angústia, filmando tudo ao redor num curta
metragem animado. Quem sabe, depois de algum tempo, o seu todo criasse asas e
subisse.
Não só subisse. Voasse bem
alto, ganhasse o espaço como um balão de gás repleto de fantasias e caprichos
ficcionais em direção à imensidão cálida de um céu sem fim. Se ao menos pudesse
partir para longe, deixar de viver, de existir, de dar murros em pontas de
facas afiadas, de venerar aquela beldade, gritaria, ou melhor, recitaria para a
sua professorinha intocável e inimitável, versinhos de Bocage: “saiba morrer o
que viver não soube”. E se sentiria, enfim, sabendo findar naquilo que não
conseguiu levar adiante, realizado, como o poeta do arcadismo lusitano, pleno,
exaltado, “A Elegia”, e “A Virtude Laureada”, senhor de si e mais que qualquer
outra coisa: dono absoluto da situação.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza. De Brasília, Distrito Federal, 15-9-2017
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