Aparecido Raimundo de Souza
HAVIA ALGO DE ESTRANHO NO AR.
Alguma coisa nova que eu não estava sabendo distinguir, ou melhor, enobrecer,
apesar de toda a minha vivencia, atrelada as experiências de tantos janeiros
computados. Afinal de contas, seis décadas, são seis décadas. Seis décadas...
não são seis dias, nem seis semanas.
Não nasci ontem, e, via igual,
não era mais moleque de escola, nem estava tão velho e gagá, que não
conseguisse perceber ou diferenciar quando uma novidade pairava ao lado, ou
grosso modo, de todas as formas possíveis e imagináveis, um obstáculo não
cadastrado me tentasse atropelar para onde quer que eu pensasse seguir. Pelas
tonturas da imaginação, a lassidão insistia pertinaz. Contudo, eu jamais me deixaria fenecer,
apesar de sóis de abismos desenharem descontroles no ventre aberto do meu
destino doente.
Eu percebia a novidade. Um
serviço de febre que dançava melífluas, como se um quadro de abelhas
recém-pintado, de cores berrantes, fosse deixado do meu lado, inacabado. Sua
presença espectral fingia ser alguém que me cercava de todas as formas, de
todas as maneiras, como se quisesse pular do cavalete, e me obstaculizar os
passos. Mostrar de qualquer maneira, que estava ali, vivo e pulsante. Eu o via,
pois, real e palpável. Sentia o cheiro das tintas me arrebentando as entradas
do nariz.
Havia mais. Posso jurar que
além dele, existia outra coisa mais circunspecta e sisuda, que emanava dos
contornos do pincel, e bailava com todas as forças e energia bem diante dos
meus olhos. Todavia, por algum motivo inexplicável, apesar de avidamente
desperto, olhos arregalados, os sentidos apurados, em alerta máximo,
concentrados no presente, apesar dos pés no chão, alguma bobeira malparida não
me permitia enxergar com a nitidez devida.
Como se alguém não
materializado, encoberto em sua ausência por toda parte (o pintor invisível,
talvez) me tivesse colocado uma venda pior que a da fuça da justiça. Podia
quase pegar, apertar, tocar, sentir a textura do pano negro, mas o trambolho,
de repente, se diluía se desmanchava. Caia por terra, rolava como água ligeira
escorrendo pelos vãos dos dedos. Dedos são filmes. A tela se apaga na confusão
ríspida das mãos.
Nessa peleja para distinguir
pelo menos o óbvio do que se patenteava manifesto, me quedei em lembranças. Me
deixei envolver por devaneios, quimeras adormecidas e sonhos. Mera obsessão
particular. A magia dos mimos aflorava, expandia. Todo meu ser estava aberto às
alegrias e sentimentos bons, as querenças e insinuações que faziam a alma
sorrir de alegria e se contagiar pela emoção. A minha emoção, todas as manhãs,
acendia uma esperança nova, como uma bomba em expansão.
Eu estava em festa, refratário
contumaz, como se comemorasse os quinze anos com todas as pompas de um guri que
acabava de conquistar o mundo. Apesar disso, eu murchava inebriado, como uma
pétala de rosa colocada indevidamente dentro de um forno de micro-ondas. O
perfume dessa flor ficava entranhado na boca. No meu corpo, a promessa
imorredoura do licor não tomado.
A barreira, porém, continuava.
Insistia, pesava, não arredava pé. E o algo estranho, o algo insondado e
profano ali, ao lado, no esmorecimento do desespero, quase a gritar, não
atreguava: “estou aqui, estou aqui, por que não me enxerga? Por que não me
vê?”. Cerrava os olhos numa derradeira tentativa de comunicação. Numa
comunicação em que só de pensar em uma saída seria ganhar troféus e subir em
pódios imagináveis.
Procurei deixar os pensamentos
quietos, as ideias ordenadas, os afazeres do dia a dia acomodados num cantinho
oculto. Eu tinha um lugarzinho oculto (aliás todos temos um compartimento
impenetrável), onde entulhava de tudo. Uma espécie de lugar secreto. Só eu
tinha a chave de acesso, só eu sabia como chegar confiante na intimidade desse
aconchego.
Entretanto, nem assim eu
atinava com o que me rodeava. Talvez fosse algo tão excelente, tão puro, tão
divino, que, por um breve instante chegasse a pensar com meus botões “Quem sabe
eu não mereça, talvez eu não seja agraciado, porque falta algo que me complete.
Talvez eu não seja merecedor dessa felicidade, talvez...”. E então percebia que
realmente faltava uma parte primordial. Uma parte que formava o todo, ou o
TUDO.
Nesse desconjunto de
combinações intensas, se ocultava, em algum desvão, a senda encantada, a trilha
que se entrelaçava ao sonho e a realidade, que se baralhava a beleza e ao
donaire, a formosura e a delicadeza. Mesmo tropel, se esvaia o oxigênio para a
vida seguir adiante. Escasseava o amor, para a alma se sentir absoluta. Nesse farto déjà Vu, a solidão se alimentava
mastigando saudades doentes, presas a uma espécie de UTI do destino.
O simples se ocultava se
recolhia, cerrado. Tipo fenda e vulcão. Como o chinelo faltoso para calçar o pé
descalço, o beijo envolvente, para os lábios se abrirem na linguagem da
materialização do amor. O carinho se via ausente, para inebriar o silêncio que
atormentava inquieto, rabugento, enfermo, pernicioso, desagradável. Faltava à
parte da maçã, a tampa da panela, o viço da realeza na sua melhor forma de
expressão. Em conclusão, cabia ao TUDO, com apetite de faquir, contemplar as
imagens dos meus dissabores em delírio etéreo.
Nada existia sem o tudo, o
tudo não vingava sem o nada. O algo impróprio que me envolvia... o sei lá que
me abraçava, que me fazia tremer, punha o coração à beira de um quase colapso,
e eu não percebia (apesar de vivo, e em gozo absoluto da saúde física e mental),
esse meu lado findo. E por que não
percebia? Simplesmente porque esse meu lado acabado, estava morto. Faltava,
outra vez, o TUDO.
Por conclusão, devo dizer me
transformei num zumbi abobado, vagando acima do meu próprio reflexo, retendo as
últimas passadas do NADA, tão medroso e assustadiço como se me esgueirasse
alarmado e espavorido de uma serpente enorme. De repente, num vórtice, a eterna
sensação de queda. Nesse tombo, como em miragem, levitarei diante dos meus
medos pelo resto da escuridão sonâmbula. Deixarei, dentro em pouco, de ver, de
existir.
Deixarei igualmente de
respirar. Partirei o sorriso mofino, uma longa morbidez me envolvendo o direito
de ser feliz. Fui, como o vento, indo, indo... Extinta, pois, a fugidia
importância de tudo o que me cercava. Nada mais me resta, nada mais me retém.
Nesse complexo de paradoxos, a pergunta que não quer calar: ter morrido me
tiraria o direito de viver? Sim! Ter morrido indubitavelmente me tirou o
direito de viver.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza. De
Brasília, Distrito Federal. 19-9-2017
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