quarta-feira, 20 de setembro de 2017

[Aparecido rasga o verbo] Dimensões de rupturas na comédia de falsos costumes

Aparecido Raimundo de Souza

HAVIA ALGO DE ESTRANHO NO AR. Alguma coisa nova que eu não estava sabendo distinguir, ou melhor, enobrecer, apesar de toda a minha vivencia, atrelada as experiências de tantos janeiros computados. Afinal de contas, seis décadas, são seis décadas. Seis décadas... não são seis dias, nem seis semanas. 

Não nasci ontem, e, via igual, não era mais moleque de escola, nem estava tão velho e gagá, que não conseguisse perceber ou diferenciar quando uma novidade pairava ao lado, ou grosso modo, de todas as formas possíveis e imagináveis, um obstáculo não cadastrado me tentasse atropelar para onde quer que eu pensasse seguir. Pelas tonturas da imaginação, a lassidão insistia pertinaz.  Contudo, eu jamais me deixaria fenecer, apesar de sóis de abismos desenharem descontroles no ventre aberto do meu destino doente.

Eu percebia a novidade. Um serviço de febre que dançava melífluas, como se um quadro de abelhas recém-pintado, de cores berrantes, fosse deixado do meu lado, inacabado. Sua presença espectral fingia ser alguém que me cercava de todas as formas, de todas as maneiras, como se quisesse pular do cavalete, e me obstaculizar os passos. Mostrar de qualquer maneira, que estava ali, vivo e pulsante. Eu o via, pois, real e palpável. Sentia o cheiro das tintas me arrebentando as entradas do nariz.

Havia mais. Posso jurar que além dele, existia outra coisa mais circunspecta e sisuda, que emanava dos contornos do pincel, e bailava com todas as forças e energia bem diante dos meus olhos. Todavia, por algum motivo inexplicável, apesar de avidamente desperto, olhos arregalados, os sentidos apurados, em alerta máximo, concentrados no presente, apesar dos pés no chão, alguma bobeira malparida não me permitia enxergar com a nitidez devida.

Como se alguém não materializado, encoberto em sua ausência por toda parte (o pintor invisível, talvez) me tivesse colocado uma venda pior que a da fuça da justiça. Podia quase pegar, apertar, tocar, sentir a textura do pano negro, mas o trambolho, de repente, se diluía se desmanchava. Caia por terra, rolava como água ligeira escorrendo pelos vãos dos dedos. Dedos são filmes. A tela se apaga na confusão ríspida das mãos.

Nessa peleja para distinguir pelo menos o óbvio do que se patenteava manifesto, me quedei em lembranças. Me deixei envolver por devaneios, quimeras adormecidas e sonhos. Mera obsessão particular. A magia dos mimos aflorava, expandia. Todo meu ser estava aberto às alegrias e sentimentos bons, as querenças e insinuações que faziam a alma sorrir de alegria e se contagiar pela emoção. A minha emoção, todas as manhãs, acendia uma esperança nova, como uma bomba em expansão.

Eu estava em festa, refratário contumaz, como se comemorasse os quinze anos com todas as pompas de um guri que acabava de conquistar o mundo. Apesar disso, eu murchava inebriado, como uma pétala de rosa colocada indevidamente dentro de um forno de micro-ondas. O perfume dessa flor ficava entranhado na boca. No meu corpo, a promessa imorredoura do licor não tomado. 

A barreira, porém, continuava. Insistia, pesava, não arredava pé. E o algo estranho, o algo insondado e profano ali, ao lado, no esmorecimento do desespero, quase a gritar, não atreguava: “estou aqui, estou aqui, por que não me enxerga? Por que não me vê?”. Cerrava os olhos numa derradeira tentativa de comunicação. Numa comunicação em que só de pensar em uma saída seria ganhar troféus e subir em pódios imagináveis. 

Procurei deixar os pensamentos quietos, as ideias ordenadas, os afazeres do dia a dia acomodados num cantinho oculto. Eu tinha um lugarzinho oculto (aliás todos temos um compartimento impenetrável), onde entulhava de tudo. Uma espécie de lugar secreto. Só eu tinha a chave de acesso, só eu sabia como chegar confiante na intimidade desse aconchego.

Entretanto, nem assim eu atinava com o que me rodeava. Talvez fosse algo tão excelente, tão puro, tão divino, que, por um breve instante chegasse a pensar com meus botões “Quem sabe eu não mereça, talvez eu não seja agraciado, porque falta algo que me complete. Talvez eu não seja merecedor dessa felicidade, talvez...”. E então percebia que realmente faltava uma parte primordial. Uma parte que formava o todo, ou o TUDO.

Nesse desconjunto de combinações intensas, se ocultava, em algum desvão, a senda encantada, a trilha que se entrelaçava ao sonho e a realidade, que se baralhava a beleza e ao donaire, a formosura e a delicadeza. Mesmo tropel, se esvaia o oxigênio para a vida seguir adiante. Escasseava o amor, para a alma se sentir absoluta.  Nesse farto déjà Vu, a solidão se alimentava mastigando saudades doentes, presas a uma espécie de UTI do destino.

O simples se ocultava se recolhia, cerrado. Tipo fenda e vulcão. Como o chinelo faltoso para calçar o pé descalço, o beijo envolvente, para os lábios se abrirem na linguagem da materialização do amor. O carinho se via ausente, para inebriar o silêncio que atormentava inquieto, rabugento, enfermo, pernicioso, desagradável. Faltava à parte da maçã, a tampa da panela, o viço da realeza na sua melhor forma de expressão. Em conclusão, cabia ao TUDO, com apetite de faquir, contemplar as imagens dos meus dissabores em delírio etéreo.

Nada existia sem o tudo, o tudo não vingava sem o nada. O algo impróprio que me envolvia... o sei lá que me abraçava, que me fazia tremer, punha o coração à beira de um quase colapso, e eu não percebia (apesar de vivo, e em gozo absoluto da saúde física e mental), esse meu lado findo.  E por que não percebia? Simplesmente porque esse meu lado acabado, estava morto. Faltava, outra vez, o TUDO.

Por conclusão, devo dizer me transformei num zumbi abobado, vagando acima do meu próprio reflexo, retendo as últimas passadas do NADA, tão medroso e assustadiço como se me esgueirasse alarmado e espavorido de uma serpente enorme. De repente, num vórtice, a eterna sensação de queda. Nesse tombo, como em miragem, levitarei diante dos meus medos pelo resto da escuridão sonâmbula. Deixarei, dentro em pouco, de ver, de existir.

Deixarei igualmente de respirar. Partirei o sorriso mofino, uma longa morbidez me envolvendo o direito de ser feliz. Fui, como o vento, indo, indo... Extinta, pois, a fugidia importância de tudo o que me cercava. Nada mais me resta, nada mais me retém. Nesse complexo de paradoxos, a pergunta que não quer calar: ter morrido me tiraria o direito de viver? Sim! Ter morrido indubitavelmente me tirou o direito de viver.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza. De Brasília, Distrito Federal. 19-9-2017

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