quarta-feira, 22 de março de 2017

Os patrocínios do livro de Jorge Sampaio

João Lemos Esteves

Paulo Portas ir para a Mota-Engil é um “crime de lesa-pátria” e mostra a corrupção da direita portuguesa; já a Mota-Engil pagar a biografia de um Presidente socialista é um serviço patriótico feito pelos responsáveis empresários portugueses!

1. Foi, ontem, publicada a biografia de Jorge Sampaio escrita por José Pedro Castanheira – trata-se do segundo volume, que cobre o período mais relevante da vida política do socialista, desde a vitória na eleição autárquica lisboeta de 1989 até ao término do seu segundo mandato como Presidente da República. Esperamos, na próxima madrugada, concluir a sua leitura – e então (só então!) abalançarmo-nos para uma análise integral e abrangente do respectivo conteúdo.

Recusamo-nos a analisar excertos, partes ou frases decalcadas, muitas vezes sem o devido enquadramento, de obras: é uma questão de princípio da qual não abdicamos: por conseguinte, limitar-nos-emos, hoje, a registar dois aspectos que reputamos de muito sintomáticos da (falta de) qualidade da nossa democracia.

2.1. Em primeiro lugar, não deixa de ser deveras curioso que, na contracapa do livro, surjam as referências aos patrocinadores da biografia de Jorge Sampaio. São eles: o BPI, a FLAD, a Fundação Oriente, o Grupo Visabeira, o Instituto Português de Relações Internacionais, a PT e a Mota-Engil, para além do BPI. Pois bem, há que distinguir: quanto à FLAD, à Fundação Oriente e ao Instituto Português de Relações Internacionais, estes são apoios institucionais que são frequentes na publicação de obras de carácter académico ou científico.

Muito mais surpreendente é o apoio de grupos empresariais privados, como a PT, a Mota Engil e a Visabeira, a um livro que visa expor o percurso político de uma personalidade portuguesa. Personalidade, essa, ainda viva, ainda participante na vida política (nem que seja indireta e esporadicamente ou por interposta pessoa) e cujo protagonismo cimeiro terminou há relativamente pouco tempo (há uma década!). Julgamos mesmo que se trata da primeira vez que tais grupos empresariais patrocinam a publicação de um livro. Terá sido por amizade? Terá sido por admiração face ao percurso e trabalho político de Jorge Sampaio? Admitimos que sim: pensamos que uma destas será a explicação mais convincente.

E não há problema algum: a Mota-Engil, a PT e a Visabeira, tal como o BPI, são empresas privadas que gastam o seu dinheiro nos investimentos e iniciativas que reputam como sendo estratégicas para os seus interesses. A questão que podemos colocar é diversa: por que razão os capitalistas portugueses preferem sempre, sem excepção, apoiar iniciativas vindas da área socialista ou ligadas a personalidades do PS? Nós apostamos que, caso fosse um livro sobre Cavaco Silva ou sobre Passos Coelho, a Mota-Engil, a Visabeira ou o BPI não meteriam um cêntimo. Nem tampouco estes grupos empresariais apoiariam um qualquer trabalho de investigação ou de inovação proveniente de alguém da área do centro-direita. A esquerda exerce uma espécie de sedução fatal nos nossos capitalistas mais badalados.

2.2. Em segundo lugar, mais uma vez, constatamos a parcialidade (não vamos qualificar como desonestidade) da nossa imprensa do politicamente correto: Paulo Portas ir para a Mota-Engil é um “crime de lesa pátria” e mostra a corrupção da direita portuguesa; já a Mota-Engil pagar a biografia de um Presidente socialista é um serviço patriótico feita pelos responsáveis empresários portugueses!

Além disso, é incrível que a publicação das memórias de Aníbal Cavaco Silva tenha sido considerada por alguns jornalistas como um ato moralmente reprovável e um gesto indecoroso – já a publicação das memórias de Jorge Sampaio é considerada pelos mesmos jornalistas (exatamente os mesmos!) como um favor que o ex-Presidente da República presta aos portugueses. E depois ainda nos vêm dar lições de moral e de imparcialidade? Poupem-nos!

3. Dito isto, fica a constatação que mais nos inquieta: o livro de Jorge Sampaio - os apoios e reações que suscitou - mostrou eloquentemente os limites e as fragilidades do regime político em que vivemos. O poder da esquerda é ilimitado.
Título e Texto: João Lemos Esteves, jornal “i”, 21-3-2017

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