Alberto Gonçalves
Ignoro se algum canal de televisão ou
jornal diário já recebe remunerações governamentais. Se não recebem, parece, e
acho sinceramente que quase todos mereciam recebê-las, à peça ou por atacado.
O excelentíssimo senhor Publisher da
CMTV, do Correio da Manhã, da Sábado, do Record e da TV Guia exigiu, cito, um
“plano de emergência” para a “comunicação social”. Por outras palavras,
implorou ao governo que patrocine os media tradicionais sob
pena de falência geral. Por onde quer que lhe peguemos, é uma ótima ideia.
Pegue-se, em primeiro lugar,
nos famosos “conteúdos”. O sr. Octávio Ribeiro cometeu as notáveis declarações
acima durante um programa da sua televisão chamado “Sexy 20”, provável
maravilha cuja falta, por força de bancarrota, deixaria decerto os cidadãos transtornados.
E quem diz o “Sexy 20” diz as reportagens com ocultistas, videntes, tarólogas e
demais personalidades que povoam a CMTV quando a CMTV não passa fascinantes
“rubricas” sobre famosos que ninguém conhece, incêndios, violadores e
criancinhas desbaratadas pelo destino.
E quem diz a CMTV diz a
generalidade dos canais indígenas, logo que, sem desvantagens aparentes, se
troque o bruxo de Fafe pelo dr. Pacheco Pereira, os violadores por bandos de
socialistas assumidos ou dissimulados e as criancinhas por casos de sucesso
deste Portugal que nada, incluindo o bom senso, é capaz de segurar. E quem diz
a generalidade dos canais diz, salvo abomináveis excepções, a generalidade da
imprensa, hoje um imprescindível albergue de ilustres analfabetos parciais, magníficos
ativistas por inteiro e meros resignados, que, juntos, produzem folhetos tão
interessantes quanto uma unha encravada. E quem diz a imprensa diz as rádios,
que nem sei se ainda sobra alguma, mas que, à cautela, choro todos os dias com
medo de perder.
Pegue-se, em segundo lugar, no
irritante “mercado”. Por razões diversas, a maioria das quais ligadas à
realidade e maçadas similares, as pessoas deixaram de reparar na existência de
publicações em papel e, não tarda, farão o mesmo com a televisão convencional,
largada em prol de modernices que, embora lembrem a milhões de criaturas, não
lembram ao diabo. Por sorte, a cada título que fecha ou encolhe ergue-se um
clamor coletivo a louvar o dito, inevitavelmente indispensável à humanidade em
peso. Por azar, os sujeitos que clamam não compravam um exemplar do dito título
para aí desde 2007. A benefício do equilíbrio, a solução passa por forçar o
contribuinte a pagar aquilo que o público não consome. O público, que é burro,
literalmente não sabe o que quer.
Pegue-se, em terceiro lugar,
no abençoado Estado. Adicione-se o “plano”, vocábulo com agradáveis
reminiscências históricas. E polvilhe-se com a “emergência”, para dar supressão
da lucidez e sabor. Leve-se a lume brando e obtém-se, sem erro possível, qualquer
coisa de formidável: os media na dependência formal dos
senhores que mandam. Não vejo a hora. A noção de jornalismo enquanto
“contrapoder” é típica de países subdesenvolvidos e regimes nefastos. Se o
poder é bom e generoso e sadio como aquele que nos ilumina, não há motivo para
que os jornalistas não recebam diretamente de um ministério dedicado a tal
desígnio. E a hipótese de o saudável arranjo interferir na informação divulgada
não se coloca, visto que no atual cenário de prosperidade e folia as notícias
negativas para o poder só poderiam derivar da má-fé. E a má-fé não é
jornalismo.
Pegue-se, em quarto lugar,
nos media tradicionais que temos. Descontando, de novo, duas
ou três embirrantes excepções, os restantes “órgãos” estão mais do que prontos
para abraçar o próximo estádio civilizacional. Na verdade, ignoro se, além da
RTP, RTP2, RTP3, RTP África, RTP Internacional, RTP Poesia, RTP Saudade, RTP
Madeira, RTP Açores, RTP Azulejos, RTP Bicicletas e as diversas Antenas da
telefonia, algum canal ou diário já recebe remunerações governamentais. Se não
recebem, parece, e acho sinceramente que quase todos mereciam recebê-las, à
peça ou por atacado. O empenho com que servem a oligarquia não devia ser
desprezado. Não é fácil recrutar centenas e centenas de indivíduos desprovidos
de vértebras a ponto de, em colunas de “opinião” e “debates”, “reportagens” e
artigos “de fundo”, “entrevistas” e “editoriais”, prestarem com regularidade
tamanhas vénias aos donos da pátria. Ou, a julgar pela abundante amostra, é fácil.
O que é difícil, e cruel, é manter essas multidões de fiéis serviçais em risco
de desemprego. Arranje-se um plano, de emergência, para enforcar o jornalismo
antes que ele morra.
Pegue-se, enfim, na súplica do
excelentíssimo senhor Publisher da Cofina, mal se encontre
ponta por onde se lhe pegue.
Nota de rodapé
Escandalizou muita gente o
facto de os alimentos à venda na Festa do “Avante!” não pagarem IVA.
Extraordinário. O PCP anda há quase 100 anos a legitimar, a defender e, nos
momentos de entusiasmo, a tentar reproduzir alguns dos maiores crimes da
História. Mas verdadeiramente indecoroso é o partido fintar um imposto
qualquer. É – e a Reductio ad Hitlerum por uma vez vem a
propósito – como detestar o nazismo porque as chefias da Gestapo estavam isentas
de multas de estacionamento. Imagino a indignação nos cafés ou lá onde é que o
povo hoje se enfurece: “É isto que me enerva, pá. Que os gajos aplaudam a
chacina de milhões aqui e ali ainda vá. Mas venderem bifanas sem os 13% é de um
tipo ir aos arames…” O problema não é o PCP não ter IVA: é não ter vergonha.
Nem, já agora, escrutínio.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
9-9-2017
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