Helena Garrido
O homem que calculou o verdadeiro défice
público grego foi condenado a dois anos de pena suspensa. Um caso revelador das
fragilidades da construção europeia. A independência passa a exigir heróis.
Tudo começou em 2010. Andreas
Georgiou, um grego a viver nos Estados Unidos e a trabalhar para o FMI, resolve
aceitar a liderança da autoridade estatística grega, que passaria a ter o
estatuto de independência há muito exigido pelas entidades europeias. Nesta
altura já estava identificado o problema das contas públicas gregas. O défice
público estimado para o ano de 2009 era de 13,6% do PIB em abril de 2010. O
novo presidente limita-se a voltar a avaliar os números, na sequência até de
reservas que ainda eram colocadas pelas autoridades europeias – que nesta
altura já estão a emprestar dinheiro à Grécia. E em outubro de 2010 Georgiou
entrega um novo valor: 15,4% do PIB, mais 1,8 pontos percentuais que a
estimativa anterior. E é aqui a origem de todo o processo judicial que cai
sobre Andreas Georgiou a partir de 2011 e do qual se tem defendido com recursos
próprios.
Numa história que envolve
pormenores tão rocambolescos como a espionagem do seu e-mail — e que pode ser lida em pormenor aqui –, o então presidente
do instituto de estatística começa a viver um pesadelo em 2011. É nesta altura
que a justiça grega aceita investigar a acusação de que Andreas Georgiou
inflacionou o défice público grego de 2009 prejudicando o país. Entre os mais
variados processos, com recursos e anulações, a última decisão condena Andreas
Georgiou a dois anos de prisão, neste caso por não ter levado a votação o valor
que apurou para o défice público.
Nestes seis anos, o homem que
desempenhou a sua profissão de estatístico de forma independente, que expôs a
realidade financeira que os governos gregos anteriores tinham escondido, tem
sido obrigado a defender-se por sua conta e risco, sem qualquer apoio
institucional. Neste artigo da Bloomberg são revelados os apoios que
tem tido de colegas e amigos para suportar os custos da sua defesa.
O caso do estatístico Georgiou
mostra até que ponto pode ser perigoso exercer com independência a liderança de
instituições e cumprir as regras europeias ou até estatísticas. Para respeitar
as regras europeias – que deveriam aliás ser as de qualquer democracia -, o
presidente de uma instituição pode enfrentar pena de prisão no seu país, pode
ser acusado de trair a pátria. E se isso acontecer tem de se defender sozinho,
tem de arranjar dinheiro para advogados.
Nenhum caso foi tão longe como
este. Em Portugal também ouvimos e lemos, em momentos mais dramáticos,
acusações de traição da pátria quando quem está a governar quer esconder
informação. Na realidade, o que se está é a ameaçar os interesses do governo
instalado na altura. Nunca se chegou ao ponto de processar ninguém, mas, no
último ano, por exemplo, assistimos ao condicionamento de instituições como o
Conselho de Finanças Públicas.
O que aconteceu ao
ex-presidente daquele que é o equivalente grego do nosso Instituto Nacional de
Estatística (INE) expõe, de forma kafkiana, as incongruências da construção
europeia. Enquanto presidente da autoridade nacional de estatística, que
responde perante o Eurostat, entidade independente ligada à Comissão Europeia,
Georgiou, como todos os seus colegas, é obrigado a respeitar as regras e as
metodologias europeias. Mas perante o sistema judicial nacional está exposto a
acusações de “inflacionar” números, transformado no “culpado” que
desculpabiliza os erros dos governos.
Foi a falta de independência e
poder das entidades que contabilizam o défice público que nos conduziu à
“surpresa” da crise das dívidas soberanas na Zona Euro. Em Portugal, ainda que
numa dimensão mais reduzida e sem o mesmo dramatismo, também se descobriu em
2011 que havia despesa não contabilizada, que o défice afinal era maior do que
se dizia. A falta de transparência das contas públicas jogou até contra nós na
altura do pedido do empréstimo – demasiado curto para as necessidades que
tínhamos.
Como a independência política
das instituições parece requerer cada vez mais heróis e o tempo não é de
heróis, corremos um risco sério de assistirmos à repetição do passado. Por
aqui, em Portugal, condiciona-se atacando ou tentando descredibilizar quem tem
poder para ser independente ou não dando às instituições os recursos
necessários. É a primeira fase de limitação da independência que dá aos
governos o poder absoluto que não deveriam ter. As regras europeias podiam e
devia dar uma ajuda, protegendo quem como Georgiu luta pela independência e
transparência da informação.
Título e Texto: Helena Garrido, Observador,
14-9-2017
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